Medo faz é coisa: uma onça no acampamento
Redação DM
Publicado em 29 de setembro de 2018 às 23:56 | Atualizado há 7 anos
Medo faz é coisa!
Há tempos, em Belo Horizonte, numa roda de chacrinha, meu amigo Pianchão (que, nas minhas crônicas em Minas era para mim o que o João Brandão era para Carlos Drummond) dizia que, certa ocasião, encontrava-se num serviço de campo – topógrafo que ele é – fazendo o alinhamento da estrada de Paulista (SP) a Rio do Norte (ES).
Como em todo acampamento, há muita conversa, muito bate-papo para ajudar a derreter o tempo, onde há mais papo do que realidade, mas o serviço duro conduz todo mundo para as camas improvisadas e as redes armadas nos pés-de-pau.
Certo dia, estava Pianchão em companhia de um tal Paulinho, nome inadequado para um crioulo trabalhador e bem disposto, quando, não se sabe como, viram uma enorme onça pintada, dessas que aparecem nas histórias como comedeiras de boi e de gente. Até que ver uma pintada no meio de um matagal não é vantagem nenhuma: mas o caso assume importância no momento em que a onça apareceu deitada justo no meio da turma.
Pianchão, tirado a corajoso (pelo menos a propaganda é esta, mas, em caso de aperto não meto a mão no fogo), disse que ficou paralisado de frouxura, com a fera ali a três passos deles, lambendo placidamente os beições descomunais e como que ensaiando um descanso, como quem não está querendo nada com a vida.
O Paulinho, diante daquele quadro de se-correr-o-bicho-pega-se-ficar-o-bicho-come, ganhou o pé-de-pau mais próximo, e, apesar de calçado numa daquelas botinas cara-de-vaca e de o pau ser fino, em questão de segundos estava encarapitado lá em cima, que nem macaco.
Dali a uns minutos, a fera levantou-se, espreguiçou-se e foi saindo tranqüilamente, como se ali nem houvesse gente. Ganhou a picada e afundou no mundo. Passado o susto, Paulinho desceu do pé-de-pau, e a turma, encabeçado pelo Pianchão (que nunca vi gente chacoteira assim), começou a gozação, dizendo que só o medo tinha condições de ter feito o crioulo subir numa árvore de botina e tudo. Paulinho desconversou, mas a turma insistiu na idéia de Pianchão; Paulinho refugou e, ferido no seu amor próprio, protestou: que subiria tantas vezes quanto quisessem, com botina ou sem botina. E a conversa saiu da chacota e entrou no sério, surgindo até aposta. Apostaram (não sei o quê) que o crioulo não subiria de novo naquela árvore, a não ser que surgisse outra onça.
Naquele momento, após feita a aposta, surgiram uns caçadores, que vinham no piseiro da onça e, diante da admiração do pessoal sobre a mansidão e até passividade daquela besta-fera, chamou todo mundo para voltar um pedaço da picada, onde os caçadores mostraram o estrago que a onça fizera: ela matara uma porca numa tapera ali perto, e só se sabia que era porca devido a certos pedaços que a identificavam, pois o pobre animal estava completamente espostejado, que não dava nem pra se juntar um pedaço a outro. Por isso é que a monstra não bulira com ninguém: estava empanzinada de carne.
No dia seguinte, a turma começou a atucanar o Paulinho, cobrando a aposta de subir na árvore calçado na botina cara-de-vaca. Na verdade, o preto já estava antegozando o resultado da aposta, concho de que eram favas contadas. E, apesar de a turma tê-lo sungado até coisa de dois metros pau acima, ele pelejou horas e horas, mas não conseguiu subir nem meio metro mais na mesma árvore em que, na véspera, trepara em questão de segundos, todo embotinado.
Não é de todo raro ocorrerem causos em que, tangidas pelo medo, as pessoas realizam verdadeiras proezas, atravessando corgo sem saberem nadar, correndo mais do que de costume ou mesmo trepando em paus onde normalmente é impossível.
Lá pelas minhas bandas de meu torrão, um contraparente meu, Marcos Rodrigues, fugindo de uma vaca maluda, parida de novo, achou abrigo num pé de macaúba: como única valência, subiu como bala, que a vaca lhe triscava os calcanhares.
Quando a vaca sumiu, ele não pôde descer de jeito nenhum: o coqueiro ora tão espinhudo, que qualquer movimento era sintoma de graves arranhões. E ele chegara lá em cima incólume. Para descer precisou apelar para ajuda dos outros, que tiveram que improvisar um jirau.
É como eu digo: medo faz é coisa!
(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])