Opinião

Mensalão XI – O julgamento do maior caso de corrupção da história do Brasil

Diário da Manhã

Publicado em 3 de junho de 2017 às 02:25 | Atualizado há 8 anos

No dia 3, a sessão teve início às 14.25-h. Os ministros entraram em fila indiana. O último a pisar o plenário foi a grande figura do dia, o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. Gordo, com passos lentos, apelidado pelos advogados de defesa de ‘Papai Noel’, o cearense caminhou, tranquilamente, para a sua poltrona. Estava com o braço esquerdo lesionado devido a uma queda que sofreu, mas o uso do Ipad facilitou a leitura do alentado relatório. Sentou-se, como dispõe o Regimento, ao lado direito do presidente Ayres Britto. Gurgel foi duramente atacado nas últimas semanas na CPMI do Cachoeira pelo Senador Fernando Collor e pelos blogueiros de aluguel do PT. No relatório, aproveitou para recordar que havia sido vítima de ataques ‘grosseiros e mentirosos’.

Ainda repercutia a troca de acusações entre os ministros Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa. Todavia, as atenções estavam, agora, concentradas no Procurador-Geral. A leitura do relatório – que se estendeu por 278 minutos, quase cinco horas – teve apenas uma interrupção, por solicitação do presidente, de trinta minutos, também como reza o Regimento. O Procurador-Geral até tentou continuar por mais alguns minutos a leitura do relatório, que já durava duas horas e onze minutos, mas o ministro Marco Aurélio, sempre irônico, observou que “talvez não tenhamos resistência fisiológica”.

Gurgel leu, calmamente, as dezenas e dezenas de páginas do relatório. A forma de exposição, mesmo com a contundência da Acusação, acabou ficando enfadonha. Em alguns momentos – poucos – Gurgel fez, de improviso, brevíssimos comentários. Ficou a sensação de que seria muito mais racional, na sustentação oral, destacar o que considerava mais importante para a Acusação, pois os Ministros iriam receber o texto completo da Acusação. A mera leitura acabou levando ao desinteresse, bastou observar os Ministros: A maioria deles não acompanhou, na íntegra, a fala do Procurador. Alguns, inclusive, se ausentaram, longamente, do plenário.

Antes de entrar, diretamente, no processo, Gurgel passou por Nicolau Maquiavel, Norberto Bobbio, Max Weber e Raimundo Faoro. Deste último, que presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nos anos 1975-1977, e autor do clássico “Os Donos do Poder”, o Procurador-Geral chamou a atenção para a conceituação de Estado patrimonial, uma triste característica nacional:

“Que nasce e se desenvolve com o propósito de manter um círculo impermeável de comando, uma camada dirigente que atua em nome próprio, servida de instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal”.

E, numa crítica direta ao projeto de poder do PT, disse que o patrimonialismo é “um modelo a partir do qual são mutuamente concedidos favores e vantagens, e se asseguram, de um lado, a perenidade de projetos políticos pessoalizados e de tênue ou nenhum conteúdo republicano”.

Como esperado, a acusação dividiu o que chamou de ‘sofisticada organização criminosa’ em três núcleos (político, operacional e financeiro), e insistiu na inter-relação entre eles, o que reforçou a correção da decisão do dia anterior do STF ao recusar o desmembramento do processo. No núcleo político, concentrou as acusações em José Dirceu, que considerou a ‘principal figura’, o ‘autor intelectual’, aquele que ‘estava rigorosamente em todas”. Segundo Gurgel, ‘nada, absolutamente nada, acontecia sem o consentimento de José Dirceu’. Ele foi ‘o mentor’ do mensalão, do esquema que envolvia recursos públicos para obter uma base parlamentar fiel ao governo – demonstrou com detalhes, a relação entre saques, pagamentos e votações de interesse do governo no Congresso Nacional, como a reforma da Previdência oficial. Grande parte das acusações contra José Dirceu teve como base provas testemunhais. Recordou, principalmente, os depoimentos dos líderes partidários do PTB, PL e PP, respectivamente Roberto Jefferson, Waldemar Costa Neto e Pedro Corrêa. Sabedor de que este é um ponto que poderá ser explorado pela Defesa, Gurgel invocou a ‘teoria do domínio do fato’. Pois, ‘para ele, o autor intelectual, quase sempre, não fala ao telefone, não envia mensagens eletrônicas, não assina documentos, não movimenta dinheiro por suas contas, agindo por intermédio de ‘laranjas’ e, na maioria dos casos, não se relaciona, diretamente, com os agentes que ocupam os níveis secundários da quadrilha. Lida apenas com um ou outro que atua como seu interlocutor, não deixando rastros facilmente perceptíveis da sua ação. Assim, nesses casos, a prova da autoria do crime não é extraída de documentos ou perícias, mas essencialmente da prova testemunhal, que tem, é claro, o mesmo valor probante das demais provas.

Insistiu que muitos encontros ocorreram no próprio Palácio do Planalto, onde fica o gabinete do Chefe da Casa Civil. O que pode ser considerado uma sutil insinuação de que o presidente Lula deveria ter conhecimento, se não de tudo, ao menos de parte do esquema do mensalão. Concluiu os 26 minutos dedicados a José Dirceu afirmando que ele era a ‘principal figura de todo o apurado’, o ‘líder do grupo criminoso’, e que, sem sombra de dúvidas, comandava, de fato, o esquema ilícito que resultou no escândalo do mensalão. Sabia da cooptação dos políticos para a composição da base parlamentar de apoio ao governo, sabia que essa base de apoio estava sendo formada à custa de pagamento de vantagens indevidas e, acima de tudo, sabia de onde vinha o dinheiro que era utilizado para pagamento de parlamentares.

José Genoino, Delúbio Soares e Sílvio Pereira formariam o segundo escalão do núcleo político, sempre de acordo com Gurgel. Eram meros cumpridores de ordens do ‘chefe da quadrilha’. Delúbio seria ‘o elo entre Dirceu e os núcleos publicitário e financeiro’. Teria movimentado altas quantias. Era ele quem indicava a Marcos Valério os beneficiários do esquema e os valores a serem recebidos ‘dentro da engrenagem de lavagem disponibilizada pelo Banco Rural’. Para o ex-professor de Matemática do Ensino Médio, o dia não se mostrou dos mais favoráveis. Entre 1994 e 1998, Delúbio passou mais de cem meses consecutivos sem lecionar; foi exonerado do cargo. E pior: condenado pelo Tribunal de Justiça de Goiás a devolver ao Estado de Goiás 164 mil Reais recebidos, indevidamente, durante todos esses anos. Já Genoino, de acordo com a PGR, assinava, em nome do partido, diversos empréstimos, e representava Dirceu nas negociações políticas. Sílvio Pereira, secretário-geral do PT, agia nos bastidores do governo, negociando, em nome de José Dirceu, as indicações políticas que, em última análise, proporcionariam o desvio de recursos em prol de parlamentares, partidos políticos e particulares’.  A ‘troika’ havia sido desnudada. Gurgel acertou ao centrar as investigações no núcleo dirigente do PT. Dessa forma, recolheu provas irrefutáveis, como os documentos nos quais Genoino avalizou diversos empréstimos bancários contraídos em nome de Marcos Valério, citado 197 vezes por Roberto Gurgel, e considerado o ‘cabeça’ do núcleo operacional, – principal articulador dos empréstimos e transferências de recursos dos bancos para os partidos (só Valdemar Costa Neto, de acordo com Gurgel, teria recebido 8 milhões e 800 mil Reais; a Roberto Jefferson, foi prometido 20 milhões de Reais, mas pagos somente 4.540 milhões. Foi exposto, didaticamente, como Marcos Valério, de acordo com a Acusação, teria efetuado empréstimos bancários (nos bancos Rural e BMG), e pagamentos fictícios de trabalhos não realizados para desviar Milhões de Reais para o PT e seus apoiadores no Congresso Nacional. Se Dirceu ‘foi o mentor do esquema’, Valério ‘foi o seu principal operador’ e o ‘homem de confiança’ do ex-Chefe da Casa Civil. Gurgel explicou o esquema no que chamou de ‘apertadíssima síntese’:

“Efetuados os acordos com os partidos políticos e os parlamentares, a cargo de José Genoino, e sob o firme comando de José Dirceu, cabia a Delúbio Soares transmitir a Marcos Valério os valores a serem repassados e os nomes dos beneficiários. Com a informação, Marcos Valério, valendo-se da colaboração de Simone Vasconcelos e Geiza Dias, providenciava o dinheiro e sua entrega ao beneficiário. A entrega do dinheiro era feita em agências bancárias e, também, em quartos de hotel. Destacou que os pagamentos eram de valores elevados, e que Simone disse que tinha verdadeiro pavor de sair da agência bancária portando grandes quantias em dinheiro. Certa vez, solicitou que um carro-forte fosse levar a quantia de Cr$ 650.000,00 para o prédio da Confederação Nacional do Comércio, local onde funcionava a Filial da SMP&B, em Brasília-DF.

Para Gurgel, Marcos Valério só poderia ter realizado funções atribuídas pelo esquema com a colaboração dos seus sócios Cristiano Paz, Ramon Hollerbach e Rogério Tolentino, que transformaram as empresas em instrumentos para facilitar e encobrir as ações criminosas mediante fraudes contábeis.

“(…) A condição de sócio das empresas era apenas um aspecto formal de fachada. Na prática, todos, indistintamente, geriam as empresas, do mesmo modo que, também juntos, geriam o esquema ilícito de corrupção, desvio de recursos públicos, e lavagem de dinheiro. Foi através da SMP&B que o publicitário Duda Mendonça recebeu o pagamento de 11.2 milhões de Reais pelos serviços prestados na campanha eleitoral à Presidência de 2002. Como de hábito, foi usada uma agência do Banco Rural, neste caso em São Paulo, onde foram pagos Cr$ 400.000,00. Os 10.8 milhões, de acordo com Gurgel, foram depositados em uma conta nas Bahamas, por exigência do referido publicitário, com o objetivo de dissimular a natureza, origem, localização, movimentação, propriedade e destinação final dos valores provenientes de organização criminosa dedicada à prática de crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro nacional.

No final da longa exposição, Gurgel não pediu a condenação de Luiz Gushiken e Antônio Lamas. Argumentou que não havia provas suficientes para enquadrá-los.

Dessa forma, o processo ficaria reduzido a 36 Acusados. Mesmo assim, todos os 38 Acusados seriam julgados pelo STF. Fechou a dura acusação aos réus, afirmando que o mensalão foi o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção, de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil. Maculou, gravemente, a República. E solicitou a expedição de mandado de prisão, imediatamente após o julgamento, impedindo, dessa forma, que pudessem recorrer em liberdade. Terminou, ironicamente, citando alguns versos da música” Vai passar’, de Chico Buarque de Holanda, que é de todos conhecido como apoiador entusiasta de duas presidências petistas: “Dormia a nossa Pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”.

Antes de encerrar a sessão, o advogado Marcelo Leonardo, que defendia Marcos Valério, solicitou mais uma hora, além da que já fora concedida pelo Tribunal, para expor suas razões. Pedido certamente marcado pelo exagero. Gurgel teve, em média, sete minutos para acusar cada um dos réus, enquanto para os advogados de defesa estava estabelecido um tempo oito vezes superior. Como esperado, a questão foi negada de pronto pelo Ministro Ayres Britto. Parecia que o presidente estava querendo, efetivamente, assumir, com firmeza, a direção dos trabalhos. Tinha sido muito criticado pela tibieza demonstrada no dia anterior.

Como seria de esperar, os boatos tomaram conta de Brasília. Um deles era de que o Ministro Cézar Peluso não teria tempo hábil para votar, pois se aposentaria, compulsoriamente, no dia 3 de setembro, quando completaria 70 anos, o que poderia, de acordo com os advogados de defesa, fortalecer os réus, pois ele tenderia a condenar os ‘mensaleiros’. Outro boato era o de que, caso fossem condenados, advogados de alguns ‘mensaleiros’ iriam recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos(OEA), argumentando que o STF teria violado garantias e direitos individuais.

A divulgação de uma grotesca nota assinada por trinta (30) advogados do PT, deu ao tema um tom ameaçador à continuidade do julgamento e à cobertura da imprensa. Segundo eles, a expressão ‘mensalão’ exprimiria um juízo de valor pejorativo. Melhor seria usar a designação para o escândalo de ‘Ação Penal 470’. E ameaçaram tomar medidas judiciais, se não fosse adotada a nova terminologia. Mas, como não estamos na Venezuela, a ‘determinação’ virou piada. Para fechar o dia, e em temperatura bem alta, o Ministro Joaquim Barbosa, por meio de sua Assessoria de Imprensa, divulgou uma Nota, sem citar nomes, mas claramente dirigida ao Ministro Marco Aurélio, que tinha criticado o Ministro Barbosa, considerado que ele não teria agido em relação ao Ministro Lewandowski com a devida urbanidade. Assim, o Ministro Barbosa manifestou-se nestes termos:

“Em qualquer atividade humana, urbanidade e responsabilidade são qualidades que não se excluem. Mas, às vezes, a urbanidade presta-se a ocultar a falta de responsabilidade. A propósito, é com extrema urbanidade que, muitas vezes, se praticam as mais sórdidas ações contra o interesse público”.

É, a semana que iria se iniciar com as defesas, prometia ainda muitas emoções. E nada indicava que a ‘urbanidade’ iria reinar entre os senhores Ministros.

 

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail [email protected])


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