Mensalão XII – O destino bate à porta
Diário da Manhã
Publicado em 10 de junho de 2017 às 02:29 | Atualizado há 8 anosNa segunda-feira, 6 de agosto, Brasília amanheceu aguardando o primeiro dia das sustentações orais de cada defesa. Todas as atenções estavam voltadas para o prédio do Supremo Tribunal Federal. Às 14.31-h, foi aberta a sessão. O primeiro réu da lista dos 38 era o todo-poderoso José Dirceu, ex-Chefe da Casa Civil e homem forte do PT, controlador da máquina partidária – muito mais um homem dos bastidores do que um líder de massas. Ao longo de quatro décadas, construiu uma série de historietas inverossímeis acerca de sua militância contra a Ditadura. Depois do banimento, em 1969, permaneceu dois (2) anos em Cuba. Após, teria voltado ao Brasil e, pouco depois, regressado a Cuba, feito uma cirurgia plástica (não há nenhuma testemunha do fato), e voltado, novamente, ao Brasil. Para quê? Para combater a Ditadura? Não. Instalou-se em Cruzeiro do Oeste, uma cidadezinha do Oeste do Paraná, e lá acabou vivendo com uma moça, pequena empresária, que tinha uma loja chamada ‘Magazine do Homem’. Passava os dias no ócio.Não teve qualquer participação política. Em agosto de 1979, após a aprovação da Lei da Anistia, abandonou a mulher, um filho pequeno de ano, e teria voltado a Cuba para fazer nova cirurgia plástica. De regresso ao Brasil, começou a militar no PT.
Se a história de José Dirceu é marcada pela fantasia, sua defesa no processo do ‘mensalão’ não fica atrás. Era acusado de formação de quadrilha (o ‘chefe’, no entender da PGR) e de corrupção ativa (neste caso, nove vezes). José Lins de Oliveira Lima, o ‘Juca’ não fazia parte da seleta lista dos principais criminalistas do País. Mas tinha um bom padrinho: Era sobrinho de José Carlos Dias. Pouco antes, Dirceu tinha ‘plantado’ na imprensa que desejava fazer a própria defesa, como Fidel Castro, em 1953, quando foi processado pelo ataque ao quartel Moncada. Pura balela. Depois, afirmou que pretendia liderar movimentos sociais para pressionar o STF. Mais uma balela. Sempre contando com generoso espaço na imprensa, não perdeu tempo ao ver o dia de sua defesa se aproximar: Disse que a assistiria pela televisão, deitado numa rede – tudo, claro, para demonstrar que tinha nervos de aço. Juca falou apenas por quarenta minutos. Não fez uma defesa consistente. Perdeu cinco minutos com as homenagens aos ministros (Celso de Mello e Marco Aurélio) curiosa prática dos causídicos que se repetiu diversas vezes durante todo o período das sustentações orais. Falou que Mello ‘nunca se deixou pressionar, nunca vergou’’. Estranho se fosse o contrário… Recordou, ainda, que Mello tinha votado pela absolvição de Collor. O elogio era um sinal dos tristes tempos vividos pelo Brasil. Disse, ainda, que ‘não há nenhuma prova ou circunstância que incrimine o meu cliente’. Não houve compra de votos. Citou testemunhas para dar sustentação à tese de que Dirceu não tinha tempo para cuidar do PT, e que se dedicava, exclusivamente, às tarefas de governo. As testemunhas: Quase todas eram petistas e, quando não, pertenciam à chamada base aliada, como Michel Temer. Insistiu, o advogado: Não vou pedir a absolvição de Dirceu pelo seu passado, ele tem folha de serviços prestados ao País. “Não estou em um debate político. Vou pedir a absolvição com base no que consta na Ação Penal 470”. Considerou normal receber empresários no gabinete, mesmo quando acompanhados de Marcos Valério e Delúbio Soares. Afirmou que seu cliente não era chefe de quadrilha, e que as indicações a cargos faziam parte do trabalho de coordenação política da base aliada. Dando um tom épico a sua fala, e ironizando a fala de Gurgel, concluiu: “O pedido de condenação de Dirceu é o mais atrevido ‘e escandaloso ataque à Constituição Federal”. Ainda de acordo com a imprensa, ao sair da tribuna, teria recebido uma mensagem pessoal de seu cliente: “Sou teu devedor para o resto da tua vida”.
Luiz Fernando Pacheco assumiu a tribuna para defender José Genoino. Com a voz rouca, respiração pesada e a todo momento passando o dorso da mão direita no nariz, começou saudando, como um líder sindical, ‘a sofrida classe dos servidores do Judiciário”. Voltando ao julgamento, manteve o tom político, afirmando que “a população está convencida de que o mensalão é uma farsa”, e que o PT ‘tinha sido absolvido pelas urnas”. Em seguida, gastou seis minutos para historiar a vida do seu cliente. Finalmente, começou a enfrentar as acusações contra Genoino, as mesmas de José Dirceu. Imputou a Delúbio Soares a responsabilidade pelos dois empréstimos, os quais Genoino avalizou como presidente do PT, explicando que seu cliente não era responsável pela área financeira do partido. Estava sendo processado só porque presidia o partido: “Foi presidente do PT, então vai para a cadeia. Não porque ele fez algo, mas porque foi”. Citou vários petistas que reforçaram a idoneidade do ex-deputado. Voltou a fazer um discurso ‘de esquerda’, lembrou que seu cliente era uma verdadeira pessoa de esquerda’, e que esperava que chegasse ao final ‘o calvário de um homem inocente’. Por fim, considerou a Denúncia uma extensão do Direito Penal Nazista, o que é, convenhamos, um despropósito.
Até este momento, os advogados não tinham ocupado mais de quarenta minutos cada um para defender os réus. Às 15.59-h, chegou a hora de Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Quem o defendia era o advogado Arnaldo Malheiros com a tese do Caixa 2, – um meio de minimizar os crimes transformando-os em algo rotineiro, típico das eleições tupiniquins. Portanto, se havia crime, era crime eleitoral. Falou pouco: 35 minutos. Diversamente de Genoino, “Delúbio nunca se envolveu com a questão do jogo político. A responsabilidade dele era procurar dinheiro para custear a campanha. Aí não há corrupção”. Para Malheiros, ‘a verdade é que a prova é pífia, esgarçada, e não se presta à condenação de Delúbio”. Ele ‘não se furta a responder por aquilo que fez’, mas ‘não corrompeu ninguém’. Relembrou como o PT obteve o apoio do PL e de José Alencar para a Chapa de Lula. Falou, tranquilamente, da compra do PL por 10.milhões. Tudo como se fosse absolutamente rotineiro, normal, da política.
Dos dezoito deputados citados pelo Defensor, nenhum disse que era para compra de votos, nada disso, muito pelo contrário. O dinheiro seria destinado a pagar gastos de campanha, mesmo quando o recebimento estava muito distante das eleições de 2002.
Malheiros reconheceu o ilícito do Caixa 2, repetindo, várias vezes, o mesmo argumento, e descaracterizou a existência do ‘mensalão’, – tudo para evitar o enfrentamento das duas acusações que pesavam sobre Delúbio: Formação de quadrilha, e corrupção ativa (esta por nove vezes). Não convenceu. Restou, no final, recordar até a crucificação de Jesus Cristo, e associar, de forma livre – e haja liberdade! – a libertação de Barrabás pelo clamor popular à cobertura que a imprensa estava realizando do julgamento.
Depois do intervalo de 48 minutos, foi a vez de se dirigir à Tribuna, o advogado Marcelo Leonardo, Defensor de Marcos Valério, desde junho de 2005, definiu a tese do Caixa Dois, como elemento explicativo central do escândalo, e acompanhou Valério na CPMI dos Correios. Estava presente em 2007, quando veio à tona a Denúncia. Atacou as provas obtidas na CPMI e sua utilização na referida Ação Penal. Não tinha tarefa fácil. Muito pelo contrário. Meu cliente era acusado de formação de quadrilha, corrupção ativa (onze vezes), peculato (seis vezes), lavagem de dinheiro (65 vezes), e evasão)de divisas (53 vezes). Das ‘figuras de expressão’ do processo, era, certamente, o mais enroscado. Dificilmente, sairia sem uma condenação exemplar. Tentou desqualificar as provas (‘criação mental do acusador’), defendeu as empresas do cliente, justificou os encontros com acusados no processo, e buscou uma defesa articulada com outros réus. Foi o primeiro a ocupar todo o tempo da defesa (e ainda reclamou: ‘Tenho ainda três minutos, isso parece tortura psicológica’). Sabia que seu cliente seria condenado. Restou-lhe encerrar, bombasticamente, como já o tinham feito outros colegas: Marcos Valério não é troféu nem personagem a ser sacrificado em palco midiático. Foi julgado e condenado sem direito à defesa’.
O Auditório estava esvaziado. O cansaço tomou conta de todos. Os ministros manifestavam o desejo de ver logo encerrada a sessão. Porém, ainda faltava um réu: Ramon Hollerbach Cardoso, sócio de Marcos Valério. Era acusado dos mesmos crimes, desde 2005, quando o escândalo foi revelado, mas não teve a importância dada a Valério. Para o grande público, era um desconhecido. Seu advogado, Hermes Vilchez Guerrero, simpático, bem articulado, lembrou que seu cliente era discreto’, que, em sua empresa, havia uma divisão de funções, e ele era responsável pela criação; desconhecia o que corria no setor financeiro – responsabilidade de Valério – e só teria desenvolvido atividades lícitas. Resolveu encerrar – e já eram 19.11-h – citando uma passagem muito conhecida de Alexandre Herculano: ‘Debaixo dos pés de cada geração que passa na terra, dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam”. Mas ficam duas indagações: Que relação há entre a citação e o processo contra Hollerbach? E o que Herculano tem a ver com o ‘mensalão?’ Restou ao paciente Ayres Britto encerrar a sessão.
Como de praxe, a sessão do dia 7 começou com 28 minutos de atraso. O único ministro que chegou no horário – na verdade, dois ministros antes do início marcado para os trabalhos – foi Marco Aurélio. Depois de aberta a sessão, a palavra foi facultada ao advogado Castelar Modesto Guimarães Filho, que defendia o réu Cristiano de Mello Paz, sócio de Marcos Valério na SMP&B e na Griffiti. Também como está virando tradição, o advogado fez questão de citar o Ministro Celso de Mello, que, se não é vaidoso, tem tudo para sê-lo, após o final do julgamento, depois de tantos relógios e loas à sua sapiência jurídica. Guimarães estava resfriado Parecia que o clima de Brasília estava conspirando contra os advogados de defesa. Falou por 38 minutos. Insistiu que seu cliente de nada sabia, e que nas empresas SMP£B e Graffitti só desempenhava funções lícitas: ‘As atividades de Cristiano não se mesclavam porque eram inteiramente lícitas”. Era um ‘workaholic’: o primeiro a chegar e o último a sair da agência. Trabalhava na área de criação. Nada sabia do que se passava na área financeira. Implicitamente, estava transferindo para Valério a responsabilidade dos crimes. Contudo, o advogado reconheceu que seu cliente foi avalista dos empréstimos para o PT efetuados no BMG e no Banco Rural. E até explicou a razão: Queria ganhar a conta publicitária do partido. Esse reconhecimento acabou enfraquecendo a tese de que nada sabia, como afirmou seu defensor.
O clima da sessão era de ‘siesta’, de certo desinteresse, como se os ministros estivessem repousando, após o almoço. Nenhum chegou a cochilar, como no dia anterior, mas não demonstravam estar acompanhando, com atenção, a sustentação oral. Porém, a defesa de Rogério Tolentino – sócio informal de Marcos Valério, segundo a PGR -, realizada pelo advogado Paulo Sérgio Abreu e Lima, certamente despertou os ministros. Foi agressiva, irônica em excesso e até deselegante. Abreu e Lima quis ser gentil com a Ministra Carmen Lúcia, mas meteu os pés pelas mãos. Recordou que os dois haviam sido professores da PUC-MG, e mostrou-se admirado com a posição da colega, que tinha chegado a tão elevado posto. O elogio acabou passando um certo ar de galhofa. Em determinado momento, clamou: ‘Prestem atenção, senhores Ministros!” Como se estivesse numa sala de aula, com alunos travessos.
Atacou, duramente, a PGR, considerando a Denúncia “um roteiro para as novelas das oito”. E mais: “Eu acho e já afirmei, algum auxiliar do eminente Procurador que sustentou esta Denúncia, que tenho para mim como ruim e fraca, teve preguiça mensal de ler os autos”. Teve de reconhecer, porém, que seu cliente fez um empréstimo de 10 milhões no Banco BMG, recebeu da SMP£B 1.49 milhão de reais em recursos não declarados, e que “entregou três cheques em branco à SPM£B e, por ordem de Marcos Valério, Simone Vasconcelos os preencheu para a Bônus Banval”. Os cheques foram repassados para três políticos do PP (Pedro Henry, Pedro Corrêa e José Janene). Falou com naturalidade sobre os cheques, como se fosse algo rotineiro. Repetiu a tese da existência do Caixa 2, – pedra de toque de vários defensores, – diminuindo ao máximo o papel de seu cliente no escândalo. Chegou a ridicularizar a acusação da PGR a respeito da viagem a Portugal com o objetivo de obter recursos. Tolentino teria realizado apenas ‘turismo’ remunerado. Deve ter comido um belo bacalhau, pastel de Belém: vinho, não, porque ele não bebe”. E encerrou a histriônica defesa em 49 minutos.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail [email protected])