Opinião

Meu folclórico padrinho João Barbosa

Redação DM

Publicado em 3 de janeiro de 2016 às 23:09 | Atualizado há 9 anos

Leitura obrigatória, tirante aquelas que fazem parte do meu dia-a-dia de profissional das leis, são os livros de Chico de Britto, os de Carmo Bernardes, leitor assíduo que era de sua coluna às quartas e aos sábados, em um jornal de Goiânia, onde também andei escrevendo uns anos, companheiro de crônica, como uma espécie de pupilo, entronizado que fui por ele a alinhavar meus causos sabatinos naquele  jornal.

Um certo dia, ele me trouxe um grande prazer em comentar uma crônica sobre meu folclórico padrinho João Barbosa, de quem a gravata não era apenas uma indumentária, mas espécie de apêndice de seu próprio corpo. Metido a íntimo de políticos, chegou a ser delegado de polícia calça-curta na Macambira, onde reivindicou uma homenagem à sua companheira, minha madrinha Isidória, que batizou com seu nome o terminal do Setor Pedro Ludovico.

Mas, voltando à vaca fria, ainda estes dias, relendo ou treslendo um conto de Chico de Britto, sobre uns ciganos que passaram o quinau em um fazendeiro, vendendo-lhe uma besta cega, ocorre-me hoje refletir sobre os ciganos.

Se há uma nação de gente que parece fadada à extinção é a dos ciganos. Há muitos anos que não vejo essa nação de gente, que exercita seu nomadismo em bandos perambulantes no interior do Brasil. Só de vez em quando a imprensa dá conta de que uma chusma deles foi escorraçada pela polícia, por conta de furto ou mesmo de bagunça e cachaçada, sem se falar de crimes.

Em determinadas quadras de ano, chegavam às cidades do interior bandos de homens, mulheres e crianças, portando uma tralha imensa, dos mais diversificados apetrechos e, sem cerimoniosamente, armavam na praça principal suas barracas rotas de lona batida pelo uso, dando um aspecto circense à cidadezinha escolhida para o passadio de pouco tempo. No interior de duas, três barracas abrigava-se a promiscuidade de várias famílias.

Via de regra, os ciganos são vadios, cachaceiros, caçadores de indaga, vivendo de trambiques, trocando seus esqueléticos rocinantes por animais de catadura melhor, ou vendendo tachos de cobre falsificado. Enquanto as mulheres, desfilando saias rodadas e cheias de babados até os tornozelos, escandalosamente coloridas, saem de casa em casa vendendo tachos “de cobre” e iludindo o povo com os mistérios da cartomancia e da quiromancia, a ler a “buena dicha”, os homens arrebanham seus mal nutridos animais de montaria para tentar passá-los adiante num negócio qualquer. As crianças, desde cedo aprendem a furtar, desde ovos nos ninhos até objetos, que a distração dos outros se incumbe de fazê-las exímias descuidistas.

Malandros e vigaristas, os ciganos costumam usar dos expedientes mais mesquinhos para empurrar suas mercadorias nos incautos: o metal falsificado para aparentar o cobre, com um brilho ilusório que permanece alguns dias, e quando pega a começar o azinhavre, a ciganada já está muito longe; é o sabugo de milho colocado no animal magrelo, entre o espinhaço e o suadouro do arreio, para fazê-lo mais arisco pelo machucar incômodo em cima de uma pisadura; um rosário de inventivas e treitas próprias do gitano, que nenhuma questão faz de ser preso hoje e solto amanhã.

A vida de malandragens, vigarices e furtos é questão de sobrevivência da nação errante, pois seu histórico nomadisrno não enseja desenvolver qualquer atividade sedentária. Assim, salvo raríssimas exceções, eles vivem de déu em déu, de um lugar para outro, gungunando seu patoá compartimentado e espalhando a triste fama da dispersa raça, que, desde a bíblica Diáspora, não conseguiu encontrar um ponto de apoio, pois há uma teoria de que juntamente com os judeus dispersados pelo mundo estavam os misteriosos ciganos. Estou também nessa crença. Só sendo!

Se por um lado os ciganos são uma raça caracterizada por um monte de vícios e defeitos, por outro – justiça seja feita! – são a humildade em pessoa perante qualquer autoridade. Quando uma leva de ciganos chega a uma cidade, procura imediatamente o prefeito, o juiz ou o delegado de polícia, apresentando-se e dizendo de suas boas intenções, como que carimbando um alvará verbal para poderem agir a seu modo. E a humildade dos desgraçados cativa a todos, que a hospitalidade do interiorano já e uma porta escancarada a qualquer laia de andejo.

De todos os grupos ciganos com os quais tive contato desde a meninice, só o liderado por Joaquim Néris merecia algum respeito, pois, inobstante a má fama que a nação semeou no mundo, seu bando era o mais sério, e Joaquim Néris até virou compadre de meu pai, mercê de um batizado de um dos ciganinhos. E tinha muita reverência à compadragem, não deixando jamais de visitar-nos quando de suas cíclicas passagens lá pelo Duro, trazendo o ciganinho afilhado para correr os cristos no padrinho e bater um papo gostoso cheio de assunto novo.

E sobre a sina de viverem no nomadismo, um inexplicável perambular pelo mundo, sem casa e bens de raiz, ele costumava dar a explicação:

– Se a gente passar muito tempo num lugar, os mantimentos criam bicho, os animais morrem, e a casa fica cheia de correição. Parece maldição!

E estou quase crendo que é isto mesmo.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO,  membro-fundador da Academia Tocantinense  de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

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