Milagre sertanejo: o caso do menino Rubinho que Nossa Senhora dava de comer
Redação DM
Publicado em 18 de novembro de 2015 às 22:05 | Atualizado há 10 anosFatos inexplicáveis ocorrem, mas não sempre. Tenho contado, vez por outra, coisas que parecem estar no reino do trancoso: ora, coincidências, ora histórias de aleivosias, ora casos bestas que, olhando-se bem, têm seu fundamento.
Dias atrás, contei, em “A maldição da Canabrava: o menino que virou bicho”, história de um menino, lá na Canabrava, na Bahia, que, espraguejado pela mãe, desapareceu misteriosamente atrás de uma vaca, e não houve santo que desse jeito de fazê-lo reaparecer. Muitos anos depois – contando o povo – deu pra surgir lá naquela região um homem inteiramente peludo, acompanhado de uma vaca, e estão calculando que é o tal menino, que, amaldiçoado pela mãe, foi criado no mato, feito bicho.
Falando de seu desaparecimento, lembrei-me de um outro fato, que ocorreu em Conceição do Tocantins, quando uma criança, de seus cinco anos, sumiu e passou mais de semana no mato, tendo sobrevivido, apesar da época de chuva intensa, córregos cheios e bichos de tudo quanto é espécie caçando presa. E, para tirar a limpo a história, conversei com pessoas próximas de seus pais (Moreno Guedes e Didi) e do vaqueiro que o encontrou, Adonil Silva Guedes, aparentado do menino. O pirralho fujão já estava botado na conta dos desaparecidos.
Especulei aqui e acolá, conversei com o amigo Sisenando Azevedo, que de lá e conheceu todos os personagens, panhei o fio da meada, e o causo assim se deu:
Foi em janeiro de 1982. O menino Rubinho, da tradicional família dos Guedes de Conceição, fora com os pais, moradores na rua, passear na casa de Dezinho, um parente, residente num lugar por nome Buritizinho, a duas léguas do comércio.
Entretidos em conversas de compadres, e confiados em que a meninada devia de estar por ali pelo quintal vadiando, como é o costume, cuidaram que ele estivesse distraído com uma burundanga qualquer.
Uma hora lá, lembraram-se do Rubinho, e cadê o menino? Tinha sumido.
Gritaram, caçaram ali por perto, afundaram mais na vaqueta que cerca a casa, e nada do menino.
Resultado: não houve canto que não fosse escarafunchando, e nem sinal!
Para agravar, o céu carrancudo de pesadas nuvens cumpriu sua ameaça: destampou um aguaceiro medonho, suficiente para deixar os corgos da vizinhança pelas beiradas. Mesmo debaixo de chuva – que chuva não empata sentimento – arrebanharam a vizinhança e abriram mundo, caçando o menino: esmiuçaram todos os locais conhecidos, a Lagoa Torta, o Varjão do Melado, a Lagoa do Mato, o Chapadão do Retiro, o Olho d’Água do Retiro, o Jenipapeiro, enfim tudo quanto era lugar das rodeanças, que foram vasculhados, não ficando um buraco, num raio de duas léguas, que não fosse averiguado. Durante oito dias, sempre sob a inclemência do aguaceiro terroroso, que ia fazendo de um possível reaparecimento autêntico milagre, sessenta pessoas riscaram o sertão, sem proveito. No nono dia, largaram de mão, botando o causo como perdido. Os pais, tresnoitados, abalados e desesperançados, acharam melhor ir embora, para talvez não levar susto com uma repentina notícia que lhes pudesse trazer indício de restos do filho, comido por bicho do mato, que onça e cobra por ali tinha um bando. Voltaram para Conceição.
No nono dia, passava Adonil, morador na Boa Vista, lá pelo fim da tarde, com o claror do dia entre lobo e cachorro, na barra do córrego da Rapadura com o Melado, quando ouviu choro de criança do outro lado do Melado, que estava cheio.
Atravessou-o e, entre pasmo e medo, viu um menino, peladinho, deitado na lama, chamando pela mãe. Lembrou-se do Rubinho, e sem acreditar que estivesse vivo, criou coragem e aprochegou-se, para certificar-se de que não era visagem ou engano das vistas. E, apesar do aspecto deplorável – todo picado de insetos, corpo cheio de curubas, costelas expostas e tiritando de frio –, reconheceu o menino, que, mal o vira, correra para seus braços implorando que o carregasse. Adonil rebruçou-o na camisa (que o menino estava nuzinho) e levou-o pra casa dele, Adonil, para dar-lhe pelo menos comida e um tratozinho, que até os cabelos estavam caindo.
Indagado como sobrevivera nove dias no mato sozinho, com fome, frio e riscoso ser comido por bicho, o menino, talvez delirando, disse que a sua madrinha era quem cuidava dele até certo ponto, e dali em vante ele passou a caminhar sozinho. Caminhara cinco léguas, pois fora esta a distância do local onde fora encontrado. É de se calcular que haja caminhado bem mais, pois quem está perdido nunca caminha em linha reta. Segundo o pequeno desgarrado, ele não comia nada, e seu aspecto o demonstrava.
Após cuidar do menino, Adonil arreou o cavalo e foi a Conceição para avisar os pais. Quando chegou, a mãe estava na calçada, sentada, fitando um ponto incerto no céu, trespassada, que nem chorava mais. Ao receber a notícia do achado, Didi caiu ali mesmo desmaiada.
Rubinho foi pra Dianópolis, ficando em recuperação no Hospital São Vicente de Paulo, e tempos depois o vi lá na Conceição, gordo e todo galante, sem parecer aquele esquelético garoto que, após jejum e maus-tratos durante mais de semana no mato debaixo de chuva, chegou lá como prova de que milagre existe, ou, no mínimo, o impossível acontece.
Até agora está sem ser explicado quem é a tal madrinha do menino, que o protegeu no mato, pois sua madrinha legítima, Diva, mora em Conceição, e se tivesse sido ela, é lógico que, em vez de protegê-lo no mato, cuidaria era de levá-lo pra casa. O povo andou dizendo que era Nossa Senhora quem cuidava dele e lhe dava de comer.
Sei não: prefiro botar no rol dos fatos inexplicáveis.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])