Mordomos e mordomias
Redação DM
Publicado em 19 de julho de 2016 às 01:30 | Atualizado há 9 anosAo que me lembro, o vocábulo “mordomia” popularizou-se há pouco tempo entre nós. Antes, falava-se em “mordomo”, como o encarregado de administrar uma casa ou estabelecimento alheio. Era protótipo da categoria o empertigado senhor que abria portas e anunciava visitas, nos castelos ingleses ou em suntuosas moradas similares. Mordomia nada mais era do que o ofício de mordomo.
Foi na década de 1970, já no final dos governos militares, que uma reportagem desvendou ao público as vantagens e benesses de que se beneficiavam altos funcionários em Brasília – e as rotulou como sendo mordomias. Na verdade, muitos dos beneméritos que as desfrutavam eram oficiais de alta patente que ocupavam cargos comissionados, pelo que não estranhavam tais regalias.
Adicionar benesses e lantejoulas à remuneração de chefias e cargos “de confiança” é prática antiga, que remonta à herança cultural recebida de nossos antepassados. A corte portuguesa que se transferiu para o Brasil (1808) era das mais antiquadas e formais, quando Napoleão mudava o mapa da Europa, depunha monarcas e inaugurava dinastias.
Em Lisboa e depois no Rio de Janeiro, havia uma rígida etiqueta a presidir todos os atos, tanto oficiais quanto privados – e a quantidade de funcionários da Coroa era algo assombroso. Quando algum membro da família real saía às ruas, era obrigatório que todos os passantes se ajoelhassem; ao menos uma vez por semana, o sobreano reinante reservava algumas horas para receber o preito de vassalagem de seus súditos na cerimônia do beija-mão. Algo que, além de démodé, era também anti-higiênico.
Entre os muitos cargos disputados por fidalgos cortesãos, sobressaía, como um dos mais importantes, o de Chefe da Real Ucharia, que nada mais era do que a despensa palaciana. Ou, como diziam os contemporâneos: a casa (ou depósito) em que se guardavam as viandas, as carnes, os animais abatidos e por abater. Peça importante do sistema era o galinheiro, onde se criavam os frangos indispensáveis na mesa do Príncipe Regente. Consta que negócios escusos e propinas se faziam em torno de tais produtos, magnanimamente consumidos por integrantes dos diversos escalões que viviam dentro ou à sombra do Paço Real.
Mais de duzentos anos depois, a raça nefasta dos parasitas continua a vicejar, tanto no âmago como nas cercanias do poder. As mordomias de hoje – pujantes e viçosas mordomias republicanas – podem ser vistas como a natural proliferação de antigas certezas e acacianos direitos. Quais sejam: quem detém o poder, detém a chave do cofre; de onde pode usufruir dele para seu benefício e deslavada ostentação.
O noticiário está na mídia e causa revolta a todos os brasileiros de bom senso. A começar pelas viagens presidenciais e as comitivas dignas de potentados orientais; as suítes carésimas em hotéis luxuosos, desprezando o conforto de nossas embaixadas no exterior; os seguranças que seguram guarda-chuvas, em cenas que replicam aquarelas de Debret quando retrata o regime escravista. Além das despesas de cartões corporativos que são segredos de Estado! Afora as contas superlativas de cabeleireiro, maquiador e personal stylist pagos pelos contribuintes.
Agora, chega-nos a revelação de uma frota de oito veículos blindados em Porto Alegre, colocada a serviço da filha da presidente afastada – mais motoristas e seguranças, com os respectivos salários e diárias; e, naturalmente, combustível sem limites de gastos.
Realmente, não dá para entender. Até se compreende que Sua Excelência viaje para a capital gaúcha para espairecer das tensões do pré-impeachment – vá lá! Mas por que as mordomias usufruídas por seus familiares? Ao que se saiba, não há família real – ou imperial – no Brasil; nem príncipes, nem princesas em linha de sucessão dinástica.
Duas fotos na Internet marcam a diferença entre nós – republicanos tupiniquins – e a antiquada Inglaterra. Na primeira, a nonagenária Rainha Elisabeth II segura com uma das mãos a sombrinha transparente que a protege da chuva; com a outra, acena para súditos,que sempre os há por perto. O outro instantâneo emblemático tem como personagem o ex-primeiro ministro inglês, David Cameron. Sem demonstrar ânimo para agarrar-se ao poder, após renunciar ao posto depois do Brexit, o líder conservador foi flagrado carregando uma caixa, parte de sua mudança ao deixar a residência oficial da Downing Street n 10. E parecia perfeitamente à vontade ao fazê-lo.
Em tempo: que tal uma devassa na Real Ucharia do Palácio da Alvorada?
(Lena Castello Branco, escritora,[email protected])