Opinião

Mulher: objeto de cama e mesa

Redação DM

Publicado em 8 de abril de 2015 às 01:17 | Atualizado há 10 anos

Martiniano J. Silva ,Especial para Opinião Pública

O tema epigrafado foi publicado no jornal O Popular, Goiânia-GO, 09/08/1996, ainda merecendo publicação. A temática sobre a mulher é muito extensa, assim como a bibliografia, é variadíssima, havendo até os que querem vê-la e defini-la como mero objeto de cama e mesa. Sem muito esforço, vê-se, portanto, que o que se tem escrito (ou falado), é mais sobre ela do que dela. A bem dizer, a história da mulher brasileira, por exemplo, ainda está por ser escrita, assim como a do negro, a do indígena e de outros segmentos discriminados.

Note-se, pois, que não queria falar sobre ela, com receio de ofendê-la, medo de desagradá-la, o risco de discriminá-la. Oxalá, tivesse eu condições para homenageá-la, por sua coragem e ousadia formidáveis. Por sua garra incomum. Sua determinação singular. Homenageá-la nas incríveis situações políticas, econômicas, sociais, culturais, criminais, como tem sido colocada e tratada. Imagine-se a mulher enfermeira, verdadeira heroína, que alivia dores nos mais terríveis sofrimentos, levando esperança aos sem esperança e consolo inclusive aos em “estado terminal”, tentando afugentar a “indesejada das gentes”, de que fala o poeta Manoel Bandeira.

Vê-la, romanticamente, como a flor dos campos: “Pelas suas cores, pelas suas folhas e, sobretudo, pelo seu perfume. Mulher parideira, de que fala Cora Coralina, nos “becos de Goiás. Mulher extraordinária, Capitu de Dom Casmurro, astronauta, motorista, poeta, escritora, advogada, odontóloga, secretária, varredeira hierarquizada, judiada, “mãe coruja”, menina, criança, um feto que queriam matar, era mulher.

Mulher heroica, homérica, das noites maldormidas, da surra do marido. Mulher professora, paciente, equivocadamente chamada de “tia”. Mulher maltrapilha, “cansada de guerra”, desesperançada, desanimada, triste, chorando, jorrando sangue da violência característica do macho brasileiro. Mulher agoniada, agonizante, de tanto sofrimento, prostituída, cooptada, explorada nos motéis da hipocrisia, dos costumes e do falso moralismo da odiosa sociedade burguesa.

Mulher bonita, doce, carinhosa, alegre, entusiasmada, sem nenhum derrotismo, conquistando merecido lugar. Mulher prostituta, “mulher da vida”, mulher livre, sem aspas, que transforma a prostituição em mal necessário. Onde estão, aliás, os clássicos cabarés de luz vermelha? Os “escorrega-minreis”, de que falavam os antigos? As mulheres “traídas”?

Sim, a prostituição é a degradação da pessoa humana, a destruição da personalidade, da moral, do pudor, a inegável exploração física para a sobrevivência. Os puritanos diriam: “É um submundo, um ambiente de vergonha e de desgosto”. Não obstante, responderia uma prostituta: “A sociedade que condena este ‘submundo’ é primeira a sustentá-lo, a ampliá-lo e marginalizá-lo”.

Existiria mulher de mau gênio, cruel, megera? É uma mentira. Não existe, a não ser simbolizando uma das três “Fúrias” da mitologia grega. Aliás, o coração das mulheres não é um pedaço do céu? Até quando o firmamento e o dia se transformam em noite? Seria bem assim? Mulher delicada e valente, “é uma fera”, diria Raquel de Queiroz. Mulher decidida, estudiosa, inteligente, “exemplo de mulher”. “Mulher mágica, atração de olhares curiosos, bestiais, estátua da mesmice dos que só a vêem como objetivo de congresso sexual”.

Honoré de Balzac, diz das mulheres que sabem dar santidade às suas palavras, talvez tentando justificar a existência de mulheres santas, canonizadas pela humildade e ungidas pelo amor. Santa Maria, Santa imaculada. Santa Bárbara, Santa Inês, Santa Efigênia, que protegeria os escravos, Santa Cecília, Santa Catarina, Santa Luzia, Santa Rita dos Impossíveis, Santa Tereza, Santa Edvirges, a mártir Laura Vicunha e quantas mais. Daí, Nossa Senhora, a Aparecida, a do Rosário, a da Abadia e inúmeras outras, todas as mulheres.

Mulher, mãe solteira, casada, moça (cadê a moça donzela? Foi-se o tempo da “moça falada”, do “príncipe encantado”). Mas todas exibem seu ventre materno, seu fecundo “colo do útero”, geratriz da vida, vida até de gêmeos, trigêmeos e quantas mais, mesmo não desejadas. Mulher rapariga, moça de Portugal. Mulher executiva, organizada. Política, deputada. Vereadora, senadora. Benedita. Mulher escrava, três vezes discriminada: por ser mulher, por ser negra e por ser pobre. Mulher que, às vezes, é para o homem o que ele fez dela, sobretudo quando, casada. Acorda. Mulher, com seu profundo desejo de amar, de partir, de agradar, de ser feliz. Mulher casta, vaidosa, que “engana” e seduz.

Curiosamente, existe a “mulher família”, transformada em instituição da “casa de família, para diferenciá-la desta da “casa das primas”, da “das mulheres”, da “das vadias”, da “de tolerância” e da “de seduzir mulher honesta”, a mais perigosa de todas, contra a qual fazem até abaixo-assinado. Mulher comum, para diferenciá-la das grã-finas, quase todas “gente fina”. Mulher volúvel, que não deve existir. Mulher fêmea, com raízes na Mãe-Terra, que também tem dignidade. Mulher inteligente, de olhar vertical. Mulher fiel, que vê tudo ou nada vê. Mulher idosa, de peito caído, não sei com quantos netos.

Mulher bela, reduzida a um só acidente: o amor. Mulher boa, que muitos não sabem para quê. Mulher prudente, animalzinho de cabelos compridos, linda, que nunca teve ideias curtas. Mulher frágil é piada, puro preconceito. Mulher, que não é pior ou melhor do que o homem. Mulher em qualquer posição, em qualquer dimensão. Mulher.

 

(Martiniano J. Silva, escritor advogado, membro do Movimento Negro Unificado, da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHG-GO, UBE-GO, AGI, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM ([email protected])

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