Mulheres constituintes: a busca da dignidade feminina
Redação DM
Publicado em 19 de março de 2018 às 23:12 | Atualizado há 7 anosNo dia 7 de março, o Senado comemorou o Dia Internacional da Mulher, atribuindo a todas as mulheres constituintes o Diploma Bertha Lutz, que homenageia, anualmente, as pessoas que contribuíram para a defesa dos direitos da mulher e das questões de gênero no Brasil.
Eu, que já fui propositora de algumas homenagens com o Bertha Lutz, desta vez tive o privilégio de ser uma das 26 homenageadas. Em comum participamos da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Compartilhei a honraria com as colegas do Congresso Nacional senadoras Rose de Freitas, do Espírito Santo, Lídice da Mata, da Bahia e com a deputada federal Benedita da Silva, do Rio de Janeiro.
A luta pelos direitos da mulher continua, mas muita coisa mudou desde 1987: não havia quem homenageasse aos que defendiam os direitos da mulher – não havia Diploma Berta Lutz. Pasmem, não havia nem mesmo banheiro feminino na Câmara dos Deputados. No Senado, não havia nenhuma senadora no exercício do mandato.
No entanto, soubemos fazer dessa ausência uma presença. Impulsionadas pela campanha movida pelo então Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que proclamava que “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”, e cuja iniciativa culminou com a célebre Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, conseguimos fazer, da Constituição de 1988, um marco da equidade de gênero.
Não foi um processo fácil. A setores da imprensa interessavam muito mais nossas roupas, penteados e perfumes do que nossas ideias. Buscavam uma “musa” da Constituinte, como se fosse possível enquadrar-nos, à bancada feminina, como elemento decorativo e ornamental do processo. Éramos conhecidas, em um chiste que mal disfarça o preconceito, como o “Lobby do Batom”.
Mas de lobby tínhamos muito pouco: não formávamos um grupo homogêneo, divergíamos com frequência em relação a várias das propostas apresentadas, e nosso poder de pressão como grupo era, para dizer o mínimo, bastante limitado.
Compartilhávamos todas, porém, a perspectiva de que a Constituição deveria contemplar um papel não subalterno para a mulher brasileira. E conseguimos fazer que se explicitasse ali, logo no inciso primeiro do Artigo 5º, que inaugura o Título dos Direitos e das Garantias Fundamentais, a declaração que fere de morte o preconceito de gênero: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
E fomos além: asseguramos o direito das gestantes, a proteção ao trabalho feminino, e a plena igualdade entre os cônjuges em todos os aspectos da sociedade conjugal.
Igualdade. Não buscávamos privilégios, regalias, imunidades. Lutávamos por isonomia. Pelo fim da discriminação, pelo fim da assimetria, pelo fim da violência de gênero.
Sabíamos que a Constituição não poderia, por mágica, transformar uma sociedade em que se depositaram, durante séculos, os traços de uma cultura patriarcal e misógina. Sabíamos que o texto constitucional, sozinho, não seria capaz de resolver o problema da participação da mulher na política, da sub-remuneração no mercado de trabalho, da violência doméstica, da proteção à maternidade, da exclusão social.
Mas, sabíamos, sim, que a Constituição não é apenas um mero receptáculo que recolhe, legitima e eterniza costumes e valores sociais. Sabíamos da força criadora e transformadora das leis, principalmente das leis fundamentais. Sabíamos que, antes de organizá-la, o Direito imagina a sociedade, e trabalha para que essa sociedade imaginada – essa sociedade de sonhos, essa sociedade de direito – venha a se constituir como sociedade de fato.
E a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 representava, exatamente, essa oportunidade de refundação, de invenção de uma sociedade que se afastasse do padrão excludente e discriminatório que tínhamos até então. Não se tratava, apenas, de restauração da ordem democrática, da soberania popular, do direito ao voto. A sociedade que imaginávamos, o país com que sonhávamos, o Brasil por que lutávamos era um país em que, acima das distinções de qualquer natureza, estava o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nunca fomos ingênuas. Tínhamos aprendido, com o exemplo de Bertha Lutz, que a mera previsão legal do princípio da igualdade não seria suficiente para sua plena aplicação. Se a inclusão do voto feminino no Código Eleitoral de 1932 representou um primeiro passo na luta pela igualdade política entre homens e mulheres, sabemos que não representou mais do que uma igualdade formal, que nunca fomos capazes, até hoje, de transformar em igualdade material, haja vista a proporção minoritária de mulheres no Parlamento brasileiro.
No entanto, a Constituinte representou, sim, uma oportunidade de institucionalização de várias das demandas femininas, que muito contribuíram e têm contribuído para uma sociedade mais justa, ainda que estejamos distantes do ideal.
Sob a perspectiva da equidade de gênero promulgamos um novo Código Civil, inserimos no Código Penal a figura da violência doméstica e do tráfico de pessoas, e internalizamos, por meio da Lei Maria da Penha, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
No espaço de apenas uma geração – a minha geração, a nossa geração –, avançamos mais do que em um século. Desentocamos o preconceito de gênero, que se escondia sob um discurso histórico de naturalização da hipossuficiência da mulher, como se fossemos menores, como se fossemos incapazes, como se precisássemos da tutela masculina. Trouxemos esse preconceito para a luz do dia, e evidenciamos o quanto esse anacronismo tinha impactos negativos, não apenas sobre a ordem social, mas também sobre a ordem econômica.
Mostramos que a participação feminina, em igualdade de condições, no mercado de trabalho, na educação, na política, na família, não era um elemento periférico e contingente, mas basilar ao Estado Democrático de Direito e à economia dos países desenvolvidos. E fornecemos, ao Estado, a base jurídica para a promoção da igualdade.
Entre o idealismo constitucional e a dura realidade do dia a dia, as muitas lacunas remanescentes apenas nos lembram de que há ainda muito por ser feito. Enquanto persistir essa epidemia de feminicídios e de violência, principalmente doméstica, contra a mulher; enquanto as vítimas de estupro e de assédio continuarem sendo constrangidas e corresponsabilizadas pelas autoridades policiais; enquanto mulheres continuarem preteridas nos postos de comando e sub-remuneradas, a equidade de gênero continuará a ser apenas uma ficção jurídica.
A homenagem que recebemos representou a oportunidade para celebrarmos a possibilidade, a necessidade e a importância da luta da mulher. Todas as que recebemos o Diploma Bertha Lutz, ontem menosprezadas, hoje homenageadas, somos o exemplo vivo de que essa luta é uma dessas lutas renhidas que fazem a vida valer a pena. E de que produz resultados.
Presto uma homenagem, especialmente, àquelas que não puderam se fazer presentes. Faço, assim, uma saudação carinhosa à memória de Abigail Feitosa, de Cristina Tavares, de Dirce Tutu Quadros, de Márcia Kubitschek, e de Rita Furtado. Tenho certeza de que, se lá estivessem, compartilhariam do nosso orgulho e da nossa emoção.
E às demais, que persistimos nesta lida de fazer deste Brasil um país melhor, juntamente com todas as mulheres brasileiras, posso apenas dizer: sigamos em frente, porque – embora tenhamos ajudado a pavimentar a estrada – ainda não chegamos lá.
(Lúcia Vânia, senadora da República (PSB), presidente da Comissão de Educação do Senado e jornalista)