Na ampulheta a vida escorre em areia e loucura – I
Redação DM
Publicado em 20 de julho de 2016 às 03:31 | Atualizado há 9 anos“Queremos ser militantes, ou melhor, transformar, mudar o mundo. E podemos mudar e transformar o mundo através da miséria dos pacientes que são apenas uma parte da miséria do mundo.” (BASAGLIA, 1980)
Ele era um cidadão comum como esses que se vê na rua manchada a sangue e asfalto, falava de negócios, ria pouco, e, melhor ria quando via show de mulher nua. Até que num dia cinzento e comum de outro balcão qualquer – sem mulher e afogado num trago cor de fel – tal qual rabo de galo paraguaio embebido em rum, refletiu, por um momento, e, num gole só, imaginando uma paranoia de efeito contrário. Era um cidadão comum acostumado ao horário das ovelhas, sabia ler, distante do copo apegava-se ao fetiche do pastor?
Sujeito sem trampo comia o requentado na trempe, vivia o dia enganando o sol, à noite, enfeitiçava não somente a lua, pois era mais um sobrante urbano que acordava sempre cedo, ao final do sono numa cama sem pedigree, tal qual pardal era fatalmente apenas, e, mais um passarinho urbano. Viajava no coletivo ao som do blues de senso comum, mirava a contramão do tempo enfileirado na penitência das ovelhas citadinas efêmeras, escondidas atrás de máscaras pós-modernas e ternos de uma moda velha empoeirados, de uma face só, exposta a dúzias na banca da esquina central onde os retratos do lambe-lambe, lambidos em preto e branco, denunciavam o eleitorado contente que fervia na panela junto à água e um naco de alimento.
E isto bastava tanto e no tanto (in) exato e (in) certo, e, em troca de pão e um ingresso ao circo as ovelhas ofereciam-se – plagiando as prostitutas – voluntariando generosamente seu suor, sua lã, sua companhia, e, de vez em quando e a centavos, sua carne pagã. Pleno da fé de templo instalado e trajando terno dois números maiores, indagava a seus pecados: “Afinal, por que estas ovelhas acreditam em mim e esquecem de confiar nos seus próprios instintos? Só porque as conduzo ao alimento simbólico e a água lavada em coliformes fecais? Sem saber ou querer resposta, quiçá ouvir, embarcava no metrô, de volta e ao final da penitência, quando o cidadão metropolitano, depois de enfrentar a fila por engano além de ser um homem de bons modos capaz de se redimir ‘com licença; foi engano’.”
Os pais queriam que ele fosse padre, e, motivo de orgulho para uma simples família camponesa, que trabalhava apenas para comida e água, dividindo a rudeza da luta lambendo no coxo da vida as próprias misérias divididas com as ovelhas. Era feito da costela daquela gente honesta, boa e comovida, tão centrada na salvação, que caminha para a morte pensando em vencer na vida, a vida tornada, na labuta do arado, em vontade tão grande que, como o orgasmo da dor, ainda o fazia viver mesmo que e apenas para as dezenas de anos sepultados com água, comida e pastoreio, sem direito ao vinho destinado à burguesia sem comentar nem pedir mais que o mesmo lugar para mal dormir, todas as noites, feitas de pesadelos sobre sua agonia.
Sem entender como os doutos buscavam a Deus no pecado, desde a reclusão dos hormônios, nos tempos de seminário, lia na bola de cristal da amante cigana os sonhos que a metalinguagem foi capaz de transformar no pesadelo do Deus crucificado, e, sem pecado, anarquista que expressava a linguagem do mundo, que o homem em frangalhos, nu e leigo, nunca pôde interpretar. Se tivesse sido capaz de falar a linguagem da alma, à sombra do pé de pureza que explode em anjos caídos em época das primaveras, quem sabe seu manifesto se fizesse ou pudesse entender. Ele era feito da costela daquela gente honesta, boa e comovida que tem no fim da tarde a sensação da missão e unção cumpridas.
Na promessa de dias e terras melhores – santas – as quais nunca viu nem pisou, mas ouviu falar, um tempo longe dali, desde sua criança que lhe mostrou nos tombos da vida a realidade jamais escrita. Por que então acreditar que sonhos e santos existem quando pessoas normais têm a noção e mania exatas de como se deve ser e beber da vida, a sofrida vida mal vivida? À medida que o tempo ia passando, uma misteriosa força insistia na tentativa em provar que, para o proletário, é impossível realizar a lenda pessoal por uma simples razão excludente e capitalista: a alma do mundo é alimentada pela felicidade das pessoas, desde que tenham elas maldades, posses e poder pelos quais possam alimentar sentimentos de infelicidade, inveja ou ciúme.
Sábio, decifrou a dialética verbal, a reza que conta quando o sujeito sem face quer ou deseja alguma uma coisa, e, mesmo abstrata e irracional, tal qual a liberdade, igualdade e fraternidade, tal qual o perfume produto burguês – francês – que, a partir da sua necessidade premente, faz com que todo o universo conspire para que você realize seu desejo de consumo resumido a signo numa era moderna transfigurada a partir das raízes, e, no mapa astral. É, tendo dinheiro, não há coisas impossíveis, e, os gráficos da economia transtornada denunciam como é a vida pós-revolução industrial quando os pipoqueiros têm uma casa enquanto os pastores dormem ao relento.
Neste planeta as pessoas aprendem muito cedo sua razão de viver – diz um velho com certa amargura – do tamanho da vida – nos olhos. Talvez seja por isso que elas desistem tão cedo também. Mas, assim é o mundo, tudo nesta vida material tem um preço e é exatamente isto que os guerreiros da luz tentam ensinar. Antes mesmo do “big bang” sempre houve aqueles que acreditaram em Deus e em outras coisas invisíveis dizendo sempre sim aos seus senhores infalíveis. As pessoas solitárias não acreditam nas árvores frutíferas, não entendem o porquê dos pastores terminarem apegados a suas ovelhas.
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, filósofo, assistente social, mestre em Serviço Social/PUC-Goiás e aluno-ouvinte em Direitos Humanos/UFG)