Não existe meio-prefeito, meio-governador, nem meio-presidente
Diário da Manhã
Publicado em 23 de janeiro de 2018 às 22:39 | Atualizado há 7 anos
Miguel Angel Astúrias, prêmio Nobel de Literatura, escreveu magnífico livro inspirado na ditadura do presidente da Guatemala, Cabrera Estrada, um regime violento que vigorou há cerca de 100 anos. Deliciei-me com a sua leitura há pouco mais de 40 anos, quando vigorava em sua plenitude a ditadura brasileira inaugurada em 1964. Entre outros trechos marcantes de “O senhor Presidente”, este é o título da obra, gostei da descrição de uma conversa solitária de dois jovens, tarde da noite, acerca dos próprios sonhos, a começar por projetos profissionais, a carreira a seguir, enfim, um papo corriqueiro entre jovens. A certa altura um disse da própria pretensão de ingressar na Polícia Secreta, aconselhando o parceiro de conversa a seguir idêntico itinerário. “A secreta é a carreira do futuro”, argumentou. Naquela quadra da História brasileira a dica tinha sabor especial, eis que, idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, o sistema havia implantado, com nível de ministério, o Serviço Nacional de Informações, também chamado serviço nacional de intrigas, e a prova de que a chance para os que sonhavam alto passava pelo SNI pode ser comprovada pelo fato de o general João Batista Oliveira de Figueiredo, o ministro-chefe, ter usado o cargo como plataforma para chegar à presidência da República.
Não há que discutir quanto à importância, para qualquer regime, da posse da informação. Um fato bem presente no nosso cotidiano dá a dimensão dessa premissa. O presidente Michel Temer está às voltas com seu projeto de resgatar, retirando do fundo do poço ou da cadeia segundo palavras do ex-deputado Roberto Jeferson, a família deste, conforme declarou à imprensa o próprio presidente nacional do PTB. E a forma encontrada para esse resgate envolve a nomeação de uma filha do ex-parlamentar, a deputada federal Cristiane Brasil, para um ministério, no caso, o do Trabalho. Se Temer usasse a Agência Nacional de Informações (Abin), sucessora do SNI, para assessorar-se quanto à escolha de sua ministra, informando-se sobre o prontuário de Cristiane, poderia ter evitado o constrangimento de que está sendo vítima. No caso, de ações na justiça obstaculando a nomeação. Mas vítima? Sim, sei que posso ser questionado. Mas apresso-me em responder: não existe, na legislação brasileira, a figura do meio-prefeito, meio-governador ou do meio-presidente da República. É por isso que existe lei que prevê, por exemplo, a intervenção, pelo governador, em determinado município. Para que? É para que o interventor, investido 100 % nos poderes inerentes ao prefeito, ponha ordem na administração.
Se não existe a figura jurídica do meio-presidente da República, claro que Temer tem todo o direito de nomear ministros, recrutando-os entre os cidadãos e as cidadãs que estejam na plenitude dos direitos políticos. Para evitar desgastes como estes de que o governo Temer é recordista, devido aos vários ministros hoje atrás das grades, basta recorrer previamente, à secreta, ou melhor, à Abin. É para tarefas como essas que os governos tem serviços reservados, ou secretos de informações. Para que serve hoje a Abin? Deixar de ser o celeiro de carreiras promissoras é compreensível e até benfazejo. Mas para nada ser útil, aí já é demais.
Atualmente, o Poder Executivo vive um ciclo de desgastes. Aliás, nenhum dos três Poderes, nem mesmo o Ministério Público, pode gabar-se atualmente do pleno gozo da aceitação por parte da Sociedade. Executivo, Legislativo e Judiciário sofrem contestações. Os pecados são muito visíveis, estão expostos. Quando a presidente Dilma, tentando contar com o assessoramento político de Lula, nomeou o ex-presidente para um ministério, ela era a única pessoa que poderia nomeá-lo. Desgastada, viu sua iniciativa frustrada por sórdida trama que envolveu até a divulgação de gravações ilegais por respeitável magistrado. Estou falando de Sérgio Fernando Moro. Temer, vice-presidente de olho no lugar de Dilma, deveria ter protestado, porque ela poderia, e só ela, nomear Lula. Tanto que Temer, depois que assumiu, promoveu Moreira Franco a ministro para conferir foro privilegiado ao amigão do peito e poder continuar com a eficiente colaboração de Moreira Franco.
Mas os tempos são estranhos. Em especial para Temer e sua equipe. Todos imaginavam que, livrando-se do domínio petista, o País voltaria às facilidades de tempos idos e vividos. Puro engano. Falta legitimidade aos atuais detentores do poder. E por faltar-lhes legitimidade, não conseguirão aprovar, por exemplo, a reforma da Previdência. Pode até sair um arremedo de re-forma, mas não a reforma ou as reformas necessárias.
Porque isso não se faz em momentos de crise, de contestação, de falência moral. Ou melhor, de governo liderado por um meio-presidente.
(Valterli Guedes é advogado e jornalista)