Opinião

Não se pode fugir dos próprios pés

Diário da Manhã

Publicado em 1 de abril de 2017 às 02:08 | Atualizado há 8 anos

Ao tentar fugir, eu descobri que não se pode fugir dos próprios pés. Embora eu tenha mergulhado numa momentânea e necessária inércia física, o meu olhar revela-me furtiva.

Tantas janelas! Uma casa tem seus olhos… e ouvidos. É de fato lamentável que eu não possua asas para voar por uma daquelas janelas, que insiste em ficar aberta à espera dos empréstimos de uma luz qualquer.

Mas ainda que os meus dedos toquem o teclado, com suave habilidade–a fim de transcrever as fugas da minha mente–de modo imperceptível, as teclas tocam uma paralisante Marcha Fúnebre. O desejo de partir faz nascer em meu coração, se desenvolve e transborda por meio dos dedos e fenece ao som do velho teclado da máquina de escrever.

O barulho do teclado: tec, tec, tec… e o meu olhar ainda fixo no escancarado da janela. Atrás da máquina, eu, um espectro na cupidez da essência artística. De repente, os meus olhos enxergam a folha de papel lânguida com sua marchadela triste… Slap! A folha é arrebatada da máquina e num instante é transformada em bola de papel.

Bolas de papel… O cesto de lixo está cheio delas. Às vezes tenho a impressão de que o passado não é passado. Sinto-me um pouco assim. Apodera-se de mim esse estranho déjà vu. Quando jogo algo na lixeira, mesmo que não seja uma bola de papel, é uma bola de papel que me vejo jogando e digo a mim mesma: é estranho, mas já fiz isso antes. (retirei de cima para não ficar repetitivo e mais intrigante, já que você explica aqui o que vem a ser o déjà vu)

Coloco outra folha no rolo e giro a alavanca: força contra força batem na tecla. Espaço e letras, espaço e letras, e as teclas batem na fita e gravam no papel dizeres com tinta preta. Elevo, então, a fita para gravar uma letra maiúscula e a mão avança no rolo. A roda dentada volta o carreto a um, a dois, a três espaços… e roda o rolo…

Esqueço a janela… Fixo o olhar no texto… Leio… Tantos erros… De novo arranco o cansado papel do rolo, faço outra bola com as mãos e a encesto.

Olho para o cesto. Tudo de novo sem copy nem del? Tantos erros? É importante separar os erros inócuos dos deléveis. A janela ainda está aberta. A casa permanece a observar com grandes olhos e ouvidos atentos. O tempo avança os ponteiros do relógio de parede e a pobre lixeira vomita bolas de papel.

A janela expõe a sua boca… Há, ali, uma garganta esperando tragar pés alados. Já tentei isso outra vez e não consegui, pois os pés não possuem asas, estão acorrentados à ‘insustentável leveza do ser’. Desmanchei uma bola de papel, alisando-a sobre a mesa com a ideia de livrá-la do amarrotado intencional. E como uma última peça de um quebra-cabeça que parecia não encaixar, eis que de repente se encaixa naturalmente.

Vejo com nitidez que o erro foi a minha salvação. O mais perfeito erro que eu cometera: a incompletude tornou-se a parte mais completa de minha existência, e assim retorno a violada folha de papel à máquina de escrever… Tamborilo o teclado de modo frenético… Sempre e sempre olhando para a janela. Naquele instante eu decido: já que não se pode fugir dos próprios pés, pois estes pertencem ao corpo e o corpo à casa e a casa ao mundo e o mundo às gentes… me jogo entre as teclas e deposito nelas toda a minha ânsia de partir. (Revisão da professora Quitéria França)

 

(Clara Dawn, romancista e produtora de conteúdo do Portal Raízes (portalraizes.com)


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