Opinião

Não troco uma sebereba de buriti por esse tal de “sundae”

Diário da Manhã

Publicado em 30 de junho de 2016 às 01:24 | Atualizado há 9 anos

Hoje vou variar um pouco, deixando a podriqueira do governo para falar de assunto mais ameno, e vou de vez em quando reportando-me a coisas de nossa terrinha.

Assim no feitio de enxerido, vou entrando no terreno que consagrou Bariani Ortêncio e Carmo Bernardes, ali em Goiás, e Moura Lima, Eli Brasiliense e Juarez Moreira Filho, Moura Lima e outros, no Tocantins – a cultura popular – como se a veia de escritor e a cultura assombrosa deles já não bastassem para encher balaios de elogios.

E no prestigiar do que é nosso, o “Diário da Manhã” mostrava, semanalmente, as seções “Almanaque”, sob a responsabilidade do excelente Pernagrossa, e “Caça e Pesca”, do neófito (para mim) João Ribeiro, xará no notável sergipano, misto de poeta (“Tenebrosa Luz”), crítico (“Páginas de Estética”), filólogo (“Estudos Filológicos”), sociólogo (“O Elemento Negro”), folclorista (“O Folclore”), e mais uma car-rada de outros predicados. E o nosso João Ribeiro, que tem Álvares no meio, estreou muito bem, com suas passagens de caçador de onça pintada.

Quando morava em São José do Duro, lá ficava eu, socado no mato, só ad-mirando o que era natural e contando nos dedos as horas de chegar o jornal, que lá no Duro circulava só no outro dia.

O costume do cachimbo é que entorta a boca, e de tanto ler nossos patrícios vou acabando é por assimilar-lhes o jeito, tirando, no entender dos mais puristas, a originalidade.

Na minha primeira visita a Carmo Bernardes lá no setor Pedro Ludovico, que ainda era Macambira, falei-lhe sobre isto: o receio meu de – pela admiração de seu estilo – imitá-lo sem querer. Rindo assim só de canto de boca, ele me tranqüilizou: que a gente tirar da boca do povo as expressões não é imitar, pois ele tirou foi de lá, e se eu assim também agisse, estaria simplesmente absorvendo a cultura popular.

E aqui é que digo que estou entrando na área de Carmo Bernardes, Bariani Ortêncio e outros. Certo dia, meu mano Osvaldo me lembrou de um assunto sobre o qual parece que ainda não tinha tratado. Lembrou-me, e muito, de haver lido em Carmo Bernardes, principalmente em “Areia Branca”, várias páginas sobre a culinária popular. E é aí que quero chegar.

A lembrança traz um bando de iguarias e merendas que estão em ex¬tinção, porque agora deu para aparecer uma série de comida estranha, que vai empurrando pro canto do esquecimento nossas tradições de gosto. Surgiu a tal de “maionese”, “suflê”, “pavê”, “Subway”, “hot dog” e um rosário de nomes estranhos, muitos dos quais só foram rebatizados com nome estrangeiro, que a gente tem de torcer a boca pra poder falar.

Nossas coisas do mato são bem mais gostosas. Dá gosto a gente es¬barrar num brejo, onde impera um buritizal, e lá ficar horas esquecido ro¬endo buritis, sem carecer de açúcar. Mas o buriti tem outras espécies de preparo: a saieta, que é o buriti raspado a colher e temperado, ainda fresco, com rapadura ou açúcar; e a sebereba, que é feita com a polpa seca, depois de botar de molho e acrescida de leite e doce, embora a água seja suficiente. Quem já comeu um doce de buriti (de corte ou de colher) não se esquece mais. Faz medo é a indústria descobrir a magia do gosto e danar a fazer pi¬colé e sorvete, pra depois desgraçar o gosto, com a adição daquelas porqueiras de co¬rantes e adoçantes de ciclamato.

Um beiju (de massa ou tapioca) tem seu lugar, ainda mais besuntado de gordura de coco. Não essa que vendem aí, desodorizada, mas aquela de coco torrado e socado no pilão, que deixa no encastôo da língua o sabor de mato.

Uma lasquinha de carne seca, bem seca, picada de comprido bem fina, afo-gada numa panela d’água bem temperada e engrossada com fari¬nha de mandioca é a suficiente para uma deliciosa cabeça-de-bode, que está desaparecendo. E quando a carne anda vasqueira e a gordura falha, o sertanejo não se aperta: um picado de abó¬bora ou qualquer outro, le¬gume, temperado só com sal e pimenta, transforma-se no delicioso qui¬bebe, que sustenta o pobre na época da safra da roça e na escassez de carne.

Tendo só o feijão e o arroz, o sal e a gordura, não carece fazer duas iguarias: cozinha-se o feijão primeiro (pois leva mais tempo) e no estar amolecendo, junta-se-lhe o arroz, para fazer o popular rubacão, o baião-de-dois ou casadinho, que outros tratam de joão-e-maria e, indevidamente, mugunzá ou mucunzá. Sem ligar pro nome de batismo, o sabor continua o mesmo.

Da família das refeições, não podemos nos esquecer do cirigado, que lá pro Sul chamam de arroz de carreteiro, e por aqui ainda é conhecido por maria-isabel.

Há uma infinidade de outras coisas típicas, que só a cadência de esperar uma hora pensando faz vir à cabeça.

Forante a farinha com rapadura, que serviam de merenda (hoje, os meninos querem é balinha, sorvete e outras porqueiras furadeiras de dente), ainda me lembro de ter saciado a fome com as mais simples das merendas: a jacuba e a jiguitaia. A pri¬meira é a mistura de rapadura raspada, com farinha e água fria. E a segunda é farinha de mandioca com sal e pimenta (do reino ou malagueta verde). E só.

Sempre que posso, volto aos tempos de infância, saboreando um es¬calfado, uma sebereba, ou um cirigado com pequi antes que a evolução tome de conta do sertão e o povo até se esqueça daquilo que o sustentou desde o nascimento.

Depois volto ao assunto, imaginando a inveja que os conterrâneos nortistas (Góia, Bomfim, Cláudio Rosa, Elson, Amilton Leal, Édio Magalhães e outros) não estão tendo ao recordar aqueles sabores.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias