Opinião

Nazareno Confaloni entra no céu

Redação DM

Publicado em 27 de janeiro de 2017 às 00:59 | Atualizado há 8 anos

(Poema escrito em homenagem a Frei Confaloni, na ocasião de sua morte, em 4 de junho de 1977. Hoje, data de seu nascimento, comemora-se também seu centenário).

 

 

Te conheci tarde

como conheci Zé Décio,

um dia antes de sua morte.

E te vejo agora,

anjo barroco e rotundo

despojado de asas

e sério.

Cobriram tua humildade com linho,

com este barrete alvo

e eu venho tocar tuas mãos frias,

agitar o lenço

e ver a última vez

as tuas sandálias.

É certo que, ser impuro,

não sei os teus caminhos,

Por isso não trouxe

um bornal de paçoca,

Um quarto de rapadura e uma moringa de água.

Não sei se é permitido bagagens

nem farnel

para onde vais, assim, definitivo.

Não sei se passarás a nado

um lago escuro e precises de

uma candeia de cera

em tua sombra.

Não sei se te espera um barco,

um potro arisco,

ou mesmo um asno bíblico e humilde

de onde continuarás com as sandálias tocando o chão.

Não sei se há música nesse teu caminho,

por isso não trouxe os atabaques de minha gente humilde,

que também foi tua, e que serviste.

Não trouxe o berimbau nem as cuícas

que, por certo, gemerão nessas malocas

uma dor mais antiga.

Cobriram-te com este barrete alvo

e até os pés desceram

as dobras do linho

e ficaste assim, um pouco sério,

neste pesar definitivo.

Não sei se os tempos são os mesmos

e o céu cristão permaneça antigo.

Creio que te darás muito bem com Deus,

que ficará coçando os picumãs eternos

da barba

olhando quadros teus.

Não sei se já criaram aí,

se é para aí que vais com tuas sandálias

e teu pano de linho,

um ateliê para os pintores,

não me consta que esses ofícios

fossem bem vistos no céu.

Houve sempre alaúdes

eternamente afinados

para legiões de anjos afeminados.

Nunca soube de operários no céu,

e o que aí chegou, aquele da pedra,

virou leão-de-chácara.

Se os tempos forem os mesmos

e Deus reinar eternamente sobre os pobres mortais,

vais te dar mal

nesses confins de eterna luz

e nuncamais.

Andarás pelos corredores do empíreo

com teus cavaletes e teus quadros, espalhando

pincéis e borrifando o rosto absoluto

com essas manchas da terra.

Como poderão, ao lado do Altíssimo,

as tuas madonas negras

de rosto esférico

e olhar tristíssimo

ficar entre quérulos anjos tagarelas?

Depois os lixeiros do céu implicarão

com teus pincéis,

se por aí não encontrares

um Fra Angélico, um Da Vinci

e mesmo, que será melhor,

um Van Gogh, um Picasso,

um Portinari ou Di Cavalcanti

muito fogoso

com um batalhão de mulatas,

será dura a vida,

se as coisas não mudaram.

Dizem que a censura no céu

é coisa dura.

Tentaram reeditá-la na terra

e, por mais que dura fosse,

nunca chegou aos pés da coisa eterna.

Por cero implicarão com teu sorriso,

com teu vinho,

com o modo como pisas

e teu jeito de ficar

e ser sozinho.

Eu venho tocar as tuas mãos frias,

agitar o lenço

e ver a última vez tuas sandálias.

Não sei se para onde vais

ouve-se os ruídos da terra,

E se adianta encher-te de recados

Como se a morte te fizessem

 estafeta do céu.

Creio que estás fatigado

da miséria humana,

das injustiças, das opressões,

e precisas descansar

de tantas e tantas peregrinações.

Por isso não te peço que incomodes

tua nova vida com suas coisas novas:

a casa que arrumar, uns cavaletes novos, os pincéis,

as telas, um lugar onde pintar,

se houver o que pintar,

exceto o rosto de Deus,

nesse mundo exemplar.

Não te peço que incomodes

a paz celestial

E chegues aí logo criando

caso com reclamações

aos pés da Mãe-de-Deus,

que o Incriado fez para si,

temendo a solidão.

Não te peço que insultes o

Absoluto com nossas querelas,

Isso é coisa que devemos resolver.

Não te peço que intercedas

pelos injustiçados,

que peças luzes para os que governam,

que advogues pela família,

maldizendo o divórcio.

Estou certo de que isso é outro negócio

e cada um tem o governo

e a injustiça que aguenta.

Te conheci tarde

Como conheci Zé Décio,

um dia antes de sua morte.

Mas venho tocar tuas mãos frias,

agitar o lenço

e desejar boa viagem.

Que se arrume logo a tua vida

nessas eternas paragens.

e que se abra uma individual no céu,

mal acabada a viagem.

 

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