No quintal de casa
Redação DM
Publicado em 12 de abril de 2017 às 02:04 | Atualizado há 8 anos
Deitado na sombra ele olha para o céu do cerrado. Nenhum barulho, nenhum carro passando. A rua de domingo está silenciosa. O cheiro da grama ainda molhada pelo orvalho é muito bom. Já alimentou os peixinhos no tanque de cimento queimado, já brincou com sua cachorrinha branca, peluda, de orelhas em pé. Também já viu seus dois jabutis passeando pelos cantos.
Apenas olha nuvens. Pelo muro de elemento vasado vê a cerquinha branca que separa o quintal do jardim de frente. Nele estão plantadas umas babosas e logo na calçada, as mongubas. Adora trepar nas árvores e tem a sua predileta, que é a do meio.
O chão do alpendre é sempre fresco, daqui a pouco irá para lá. Nesse exato momento um casal de pardaizinhos pousa no segundo fio que liga os postes, de casa. Está sem o estilingue, uma pena. Também repara o calango verde no alto do muro e mais a frente uma briba dormitando. Delas ele tem dó, no Maranhão de sua mãe, ela se chama osga.
Poderia até entrar em casa para pegar uma banana ou uma mexerica. Mas o vento está tão gostoso que sabe que daqui a pouco vai dar jogo. Com o gol pintado na parede irregular, o muro do vizinho mais baixo, torce para a bola não cair lá. Aguarda seus amigos chegares: o Tonho, o irmãos Paulim e Marquim e as vezes vem o Alexandre.
Seu irmão ainda dorme. Vai torcer para ganhar no par ou ímpar para poder escolhê-lo no golzinho, ele é craque. Se for falta e pênalti é mais difícil, pois ele é baixo e não pega tão bem. Mas compensa pelo chute. Não erra nunca.
Sua mãe já foi para a feira e seu pai foi nadar. A casa é toda sua, a grade do portão range com a passagem de cada amigo. Ele bate com força só para ouvir o estalo. É bonito aquele som alto de metal.
A cachorrinha late pro Tonho, nunca gostou dele – talvez soubesse que ele não seria coisa boa na vida – e abana o rabo pros dois irmãos. Todo mundo chega junto, parece ser coisa ensaiada. Oferece uma poncã, e aproveita e cospe dois caroços em sequência. A garotada ri. Amigos desses tempos não sabem nada do futuro e muito menos da vida.
Chama seu irmão aos gritos e aproveita para usar o assovio familiar, que seu pai usa para chamá-los, inclusive sua mãe. De repente chega o Geraldão, o Alexandre, até o Sérgio – que não joga bola, mas vai pro gol quando precisa – e o quintal enche de meninos.
Não dá para jogar desse jeito, lotou demais. Resolvem deixar o quintal e vão pra rua. A Rua K é boa para isso, quase não passa carro e se vier mais gente eles vão para o lote que fica atrás da casa do Alexandre e do Geraldão, que são vizinhos. E não é que os dois irmão o Fabim e o Murilim também aparecem com uma bola nova?
Bola de capotão, tênis novinho do Murilim – que ele rapidamente pisa em cima para “batizar” – e todos em uníssono resolver sair correndo para o lote e atravessam a rua correndo e gritando:
– Quem ficar por último é a mulher do padre.
– Chegou atrás, joga no gol.
E o tempo de goiabas e jabuticabas, das gramas molhadas, das árvores frondosas, dos cachorros de casa e os da rua, dos pardais, dos jabutis e jabotas, das bananas e laranjas, das mamonas, do estilingue, do golzinho e do falta e pênalti, da lama, da terra vermelha, tudo aquilo era o seu mundo. Hoje, domingo cedo, ele se estira na varanda de sua casa e ninguém entende. Mas ele sabe que um dia o mundo fora o seu quintal.