NOS LIAMES DO TEAR
Redação DM
Publicado em 10 de julho de 2016 às 02:06 | Atualizado há 7 mesesO escritor Manoel Vicente, de vocação religiosa, foi seminarista durante vários anos, onde concluiu o primeiro e o segundo graus. Formou-se, na UFG, em Direito e na Faculdade de Filosofia da UCG (atual PUC), em Letras Neolatinas. Exímio catedrático da língua portuguesa, foi professor de português no Colégio São Francisco de Assis, em Anápolis; no Lyceu de Goiânia e no Colégio da Fundação Educacional do Distrito Federal. Dirigiu o Ginásio de Inhumas, o Ginásio Octaviano de Moraes (Paraúna) e a Academia de Polícia Civil de Goiás. Aposentou-se como Delegado de Polícia.
Obra: Ephraim; Garimpeiros em Cordéis de Ouro; Edmundo Galdino na fuga do céu; Poemas na sequência de vidas; Carreiros do Paraíso; As manhãs do Café Central; As Irmãs de Igreja; O Advogado Adaiton Raulino e as defesas no Tribunal do Júri; O carro dos bois curraleiros; Parque Vaca Brava; Jacó; Joãozinho da Odete: um pistoleiro invulgar; Raimundo Nonato, o quebrador de coco de babaçu (capa anexo) e Reflexões às pressas.
Poemas do escritor Manoel Vicente Filho (Catalão-GO). Imagens: capas de dois de seus treze livros publicados.
A VIDA NO TEAR
Depois de tudo já descaroçado,
já cardadas as cãs de velha mente
pelos embates de ânsias do passado,
fico a fiar, na roda, a dor presente.
Cordéis faço, e o tear, encordoado,
faz a lira vibrar dentro da gente,
a lançadeira a ir, vir, lado a lado,
até que vá por lado diferente.
É a naveta de rumo sem voltar
que me faz, afinal, a travessia
de não sei de onde para que lugar.
Não sei se fica alguma poesia.
Ficam, sei, nos liames do tear,
as saudades de tudo que se urdia.
(JUÍZO COM JESUS REDENTOR)
A saída que se busca,
eu não sei onde está não!
sei que um tapume corusca.
Sinto a alma em combustão.
Traspassam-me raios xis
por forja de amor ardente,
queimando a imundície existente,
vinda dos males que fiz.
Limpo já estou pela graça,
Jesus me puxa e me abraça.
O CANDOR DO LIMBO
Almas limpas no sangue do Cordeiro,
antes mesmo da água batismal,
exibem larga tela em que há um letreiro
com as cores da aurora boreal:
– Sê bem-vindo, ó poeta brasileiro!
Eis que a turma de anjinhos saltitantes
abraça-me com asas perfumosas
e ar de candor. São vagos habitantes
do limbo, iguais a pétalas de rosas
com tremeluz nos giros dos instantes
É HORA DA PARTIDA
Estou de ida por sobre os desvãos
com o tempo que escoa e não para,
a ampulheta a deixar cair os grãos
na caçapa que nada antepara.
Não se sabe se é vida ou se é sonho,
se é real ou se não é, talvez não.
Talvez seja um mergulho medonho
para o poço sem luz da razão.
As paredes do corpo em ruína
caem de vez e, no espaço, entra luz
com a paz de abstração peregrina
que se evola e, por si, se conduz.
Só a alma vai longe com brilho
sem a malha do tempo que a prenda,
vai nos vãos sem topar empecilho,
o universo será a sua tenda.
Sem apego ao mundano apetite,
a abstração voa leve e altaneira
no horizonte do além sem limite
com essência de amor sem fronteira.
Rompe a fé, caminhando na frente
e antegoza a presença divina.
O amor-Paz por inteiro se sente,
deixa a alma de ser pequenina.
A LADEIRA
Assim que me veio a vida,
começo-me a caminhada.
Foi-me sempre uma descida
para a estação de chegada,
O tempo não foi passando,
eu é que passando estive.
Descendo irei, até quando
me detiver o declive.
Nesta vida declinada,
pensa-se em si mesmo, a miúdo:
Se, no fim, não restar nada,
é que o nada será tudo.
O consolo está na vinda
de uma ida mais além,
é que o relativo finda,
só o absoluto se tem.
ORAÇÃO
Ó meu São Joaquim Barbosa,
resististe a pressões tantas
de agentes da corrupção,
mais que os santos e santas,
foste um mártir do Brasil,
duro em combate aos pilant[r]as,
Intercede junto a Deus
por todos nós brasileiros
para que a justiça impere,
puna corruptos, doleiros,
ladrões que escondem o roubo
lá nos bancos estrangeiros.
Não deixes que se rebaixem
as classes dos que dão renda
para a melhoria nossa,
não se faça mais a venda
de porto, aeroporto e BR
e a paz sobre nós se estenda.
Amém.
NA ESTAÇÃO DA ALMA
Invejo ipê. Chega o outono,
as folhas dão-lhe o abandono,
mas reage à ingratidão,
reveste-se todo em flor
da mais regalada cor
num desbotado serão.
Depois de muitas manhãs,
só me revesti de cãs
na tarde de minha vida.
Filhos em outra estação
não querem lá saber, não,
se me é chegada a partida.
E filhos folhas verão
numa próxima estação.
Na estação de embarque, está
uma canoa vazia
para a minha travessia,
por terra, ao sem lados lá.
Vou para a abstração completa,
é onde se é mais poeta
mercê da graça divina
e é onde a alma se expande
e a onisciência é tão grande,
Que a inspiração não termina.
COMÉRCIO DE ÁGUA DE COCO
O Parque Flamboyant
tem pista de caminhada.
logo cedo, de manhã,
começa minha jornada
de venda de água de coco.
O meu ganho é muito pouco,
mas eu vivo mesmo assim
com comércio num quiosque,
rente à pista aqui do bosque,
com saudades de onde vim.
Muita gente me vê e passa,
não me dá nem bom dia.
Pobre sorte me esbagaça
nas moendas da ironia.
No quiosque, durmo e acordo
com a alma tendo a bordo
esta paz que Deus me deu,
sem nenhuma corrupção,
vale mais que o dinheirão
lulado com Zé-Diz-Seu.
A página Oficina Poética, criada e organizada pela escritora e acadêmica Elizabeth Abreu Caldeira Brito, é publicada aos domingos no Diário da Manhã.Esta é a 229ª edição (desde 08/01/2012). [email protected]