Nossa Justiça a cada dia se torna mais hilária
Diário da Manhã
Publicado em 29 de dezembro de 2017 às 23:48 | Atualizado há 7 anosO mundo civilizado deve estar rindo A bandeiras despregadas desta nossa manca e metamorfoseante Justiça, que decide-mas-não-decide, que primeiro verifica o que pode acontecer para poder proferir um julgamento sem desagradar os políticos.
Quando ocorre um julgamento que movimenta a mídia ou influencia o cenário político, o Supremo, o STJ e o TSE fazem questão de ocupar o espaço da TV Justiça para mostrar uma sapiência postiça, fomentando áridas discussões que muitas vezes a nada levam. Sem generalizar, alguns querem apenas desfrutar de momentos televisivos simplesmente para aparecer. E surgem pedidos de explicações e os inevitáveis pedidos de vista sem qualquer fundamento, pois muitas vezes ocorrem quando o assunto está matematicamente decidido.
Isto ocorreu, por exemplo, quando Gilmar Mendes pediu vista daquele processo que discutia o financiamento de campanha por empresas (e ele reteve o processo por mais de um ano, deixando passar as eleições de 2014 para, no final, concordar com a maioria). Mais recentemente, no julgamento do foro privilegiado, o ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos, quando o assunto estava praticamente decidido, com a desculpa de que precisava inteirar-se mais do assunto. Isto, depois que o caso foi exaustivamente discutido em sua presença, com intervenções dele próprio. Assim, ficou adiado “sine die” o fim do julgamento, naturalmente por recomendação do Planalto, que tem uma boa parte de seus ministros dependurados na esperança de o privilégio de foro durar até enquanto tiverem mandato.
Da mesma forma, quando o julgamento implica um político de alto coturno, parece que a Justiça se divide em duas: a do pobre e a do rico, do político, do influente.
Recentissimamente, para ser mais exato no último dia 14 de dezembro em curso, o Supremo julgava o senador Ivo Cassol que não terá de dormir na Papuda, como outros réus de menor envergadura: em vez de preso, prestará serviços e pagará multa, pois a nossa Justiça causa espanto e faz gargalhar quem tem um mínimo vernizinho de conhecimento do Direito.
Condenado em 2013, o senador Ivo Cassol não cumprirá prisão. De fato, o STF concluiu no dia 14 o julgamento de três embargos de declaração na Ação Penal 565 e, diante do empate (o ministro Fux declarou-se impedido), prevaleceu a tese mais favorável ao parlamentar. O voto divergente do ministro Toffoli alterou a dosimetria da pena e substituiu a prisão por restritivas de direitos com prestação de serviços à comunidade.
O placar estava 5 a 4 pela condenação do senador, mas o caçula dos ministros, Alexandre de Moraes, que já demonstrou que sabe o ritmo em que a banda toca, provocou um empate de 5 a 5 e o Supremo reduziu a pena do senador Ivo Cassol de 4 anos e 8 meses em regime semiaberto para 4 anos em regime aberto, mas com a pena substituída por prestação de serviços à comunidade, o que significa que ele não será preso. Isto é pra ladrão de galinha, que penalmente tem mais “status” que certos parlamentares.
Diante do empate, nove dos dez ministros que participaram do julgamento entenderam que o resultado final deveria ser favorável ao réu. O único a divergir foi o ministro Marco Aurélio Melo, que invocou o voto de minerva da presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, pleito que não foi acolhido pelos colegas.
O Supremo condenou o parlamentar, com base no voto da relatora Cármen Lúcia, em 2013, pelo crime de fraude em licitação. Na ocasião, ele se tornou o primeiro senador a ser condenado pela Justiça desde a Constituição de 1988. A aplicação da pena, entretanto, foi sendo postergada devido à demora em julgar o recurso de Cassol.
Quatro anos depois, o julgamento foi retomado, não sem antes ter ficado mais de um ano parado devido a um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, que faleceu em janeiro deste ano, ficando o processo como herança para Alexandre de Moraes, que levou poucos minutos para manter pena mais rígida contra o senador.
Em 2016, o ministro Dias Toffoli foi o primeiro a votar pela redução da pena de Cassol, estabelecendo a pena que prevaleceu ao final. Ele foi seguido por Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e pelo presidente do STF à época, Ricardo Lewandowski.
A pena maior, em regime mais rígido, foi defendida pelos ministros Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber. O empate tornou-se insuperável pois o ministro Luiz Fux tinha atuado no caso quando era do STJ. Mas como o empate beneficia o réu. Cassol teve a pena aliviada, apesar de ter sido condenado pelo crime de fraude em licitação quando prefeito de Rolim de Moura, em Rondônia, entre 1998 e 2002.
Se a Justiça apronta coisas assim, causa espécie querer ser extremamente rígida em casos de grande repercussão.
Dois dias antes, em 12 de dezembro, a 1ª Turma do STF mostrou que os políticos brasileiros “legislam em causa própria”, com um exemplo concreto e gritante: absolveu o deputado federal Cabo Daciolo, do Rio de Janeiro, com base em uma lei de anistia que ele mesmo propôs, quando já estava sendo processado.
A 1ª Turma do STF concluiu que a competência para a edição de leis de concessão de anistia é do Poder Legislativo e não cabe o Judiciário se sobrepor a isso, “não havendo vício formal e material na lei”. O voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi acompanhado por unanimidade.
Entre a denúncia e o julgamento, Daciolo tornou-se réu por organizar uma greve de bombeiros e policiais militares na Bahia e no Rio de Janeiro, e em 2012, elegeu-se e criou a lei que o anistiou.
O capital político de Daciolo aumentou depois de sua atuação no caso, e ele foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro em 2014.
Em fevereiro de 2015, junto com o deputado Edmilson Rodrigues (Psol-PA), ele foi autor do Projeto de Lei da Câmara nº 17, que anistiava bombeiros e policiais militares de diversos estados que participaram de movimentos grevistas entre 2011 – quando a então presidente Dilma Rousseff (PT) já havia concedido uma anistia – e a data da publicação da nova lei.
Dois meses depois, em abril de 2015, o processo movido contra os policiais e bombeiros grevistas foi para o STF, porque Daciolo já tinha foro por prerrogativa de função. O relator, ministro Barroso, determinou o desmembramento, mantendo no Supremo apenas as acusações contra o parlamentar.
Enquanto a ação tramitava no STF, o projeto de lei foi aprovado pelo Congresso. A proposta quase não passou: em novembro de 2015, foi vetada integralmente pela então presidente Dilma. Em maio de 2016, o veto foi derrubado pelo Congresso. Michel Temer (PMDB), ainda como vice-presidente, promulgou a lei, estendendo a anistia até o dia 1º de junho de 2016.
Um ano e meio depois, no último dia 12, os ministros do Supremo declararam, então, extinta a punibilidade do deputado federal Cabo Daciolo, por causa da anistia criada pela lei proposta quando o réu já respondia à ação por associação criminosa (artigo 288, parágrafo único, do Código Penal) e por diversos dispositivos da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983).
Este nosso Brasil precisa mudar mesmo. Ninguém entende mais nada!
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])