Opinião

O aperto é o pai da invenção

Redação DM

Publicado em 30 de abril de 2017 às 21:26 | Atualizado há 8 anos

Todo mundo já foi menino, e todo menino é cheio de inventiva, ora para ser notado, ora para se livrar de momentâneo embaraço.
Meu irmão Nélio, certa vez (como contei crônicas atrás), livrou-se de um incômodo castigo (comer, a muque, seis pratos fundos de arroz-de-leite) apelando para um cachorro magrelo que lhe espiava os coagidos movimentos da colher no prato. Por ter reclamado do tiquinho de arroz doce que lhe fora dado, foi intimado por meu pai a comer um aribê da mesma iguaria até enjoar, “pra aprender a não ser sameado”.
Aproveitando-se de que meu avô Bené chegara e que meu pai frouxara a vigilância ele empurrou o arroz-de-leite no faminto cachorro, e demorou muito tempo para meu pai compreender como ele conseguira comer tudo sem repunar. E foi o próprio Nélio – que, quando menino, não era gente – quem aprontou outra.
Ora se deu que um dia meu pai botou na cabeça de aventurar um ourozinho a légua e meia da rua, num lugar por nome Lavrinha, resquício de uma lavra de ouro de aluvião abandonada após a extinção do cativeiro.
Não que meu pai fosse garimpeiro, mas comerciante; entretanto, existe em todo comerciante uma ambiçãozinha de inteirar seus lucros com qualquer extra, para compensar os fregueses velhacos que não pagam conta antiga e deixam as novas decretado a amarelarem no borrador e no conta-corrente, já na treita de dar o quinau.
Pois bem, num domingo – ou sábado, nem sei – ele pegou Nélio de companheiro, alceou a bateia, botou na cabeça um chapéu de palha trabalhado que lhe dera um velho xerente, e comeu estrada, a pé, com o filho atrás.
Na capanga de mescla, onde carregava a tralha de pitador e a cornija de carregar simonte, levou também uma xícara de esmalte para beber o café do quente-frio e trazer os faniscos de ouro que a esperança lhe soprara nos ouvidos como certos no achado.
A demanhã inteira labutou girando a bateia, e quando o sol meiou o céu, juntou o ouro arrecadado, ainda misturado no saibro pegajoso do fundo do córrego, botou na xícara que levara pra beber o café, emborcou a bateia na cabeça, mercê do sol do meio-dia que fritava o juízo, entregou a vasilha a Nélio, e ganhou a estrada de volta.
Meu pai, na frente, e Nélio, atrás; ele, com a ferramenta no ombro, a capanga a tiracolo, a bateia emborcada na cabeça e o chapéu debaixo do braço; Nélio, só com a xícara esmaltada enfiada no dedo pela asa, única incumbência que lhe fora dada na volta.
De início, o menino ia levando com cuidado a xícara, embora o barro tivesse endurecido e aderido à vasilha, transformando-se num beiju, de sorte que ficava até difícil perder o conteúdo. Mas – olha um passarinho aqui, repara um animal acolá – Nélio acabou se distraindo, e quando deu fé, estava displicentemente rodando a xícara no dedo. E o pior tinha acontecido: o ouro tinha se perdido.
Nélio nem queria imaginar o que o esperava, sabendo que um esbregue de meu pai doía mais que uma surra. A sua valência era que meu pai ia adiante, a uns dez passos, seguramente fazendo planos para o ouro bamburrado. Como explicar? Meu pai jamais iria perdoar tamanha negligência, pois Nélio fora incumbido única e exclusivamente daquilo.
Mas o aperto é que é o pai da invenção. E Nélio logo imaginou um meio de safar-se. A medida que iam se aproximando da rua, ele ia ficando mais apertado e caçando saída. Desculpas não havia.
Mas cabeça de menino é coisa muito bem encomendada pra fazer coisa errada, e como meu pai ia lá adiante, alheio a tudo, Nélio marcou uma touceira de catolé na beira do trieiro onde trafegavam e correu no rumo, caindo desajeitadamente, por cima do capinzal que espremia a estradinha, com o cuidado de fazê-lo espalhafatosamente para atiçar a xícara lá longe e principalmente chamar a atenção de meu pai. Dito e feito.
– Que foi, menino? – voltou meu pai preocupado.
– Caí… – ensaiou ele, espiando assustado a reação do velho.
– Caiu, como?
– Vinha caminhando, tropiquei e – pá! – caí…
Os olhos de meu pai cataram as mãos vazias de Nélio, atrás da preciosa xícara:
– Cadê o ouro?
– Derramou…
Foi a salvação de Nélio, embora meu pai ainda tivesse escarafunchado por ali, na esperança de reaver o que pudesse, logo desistindo com um “Ah” de raiva.
É isto. Menino tem uma capacidade inventiva espantosa. Mas na maioria das vezes só para encobrir o que erra. E não é?

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