O atrabiliário capitão Siqueira, que assombrou São José do Duro
Redação DM
Publicado em 17 de fevereiro de 2018 às 20:44 | Atualizado há 7 anosExatamente no dia 28/6/1923 – quem conta é Osvaldo Póvoa, em “Quinta-Feira Sangrenta” – chegou aos sertões de Goiás o capitão Antônio César de Siqueira para assumir o comando da 49a Companhia de Polícia Militar de Goiás, substituindo, em Natividade (onde tinha sede), ao tenente Pery de Araújo Brito, que se rebelara contra seus superiores, escapando de um fuzilamento sumário mercê de gestões do Dr. Deocleciano Nunes e devido a uma ameaça de nova sublevação da tropa.
O capitão Siqueira assumiu o comando com a especial incumbência acabar com o banditismo no Norte do Estado, notadamente no município de São José do Duro, hoje Dianópolis.
Não se sabe de onde procedia esta controvertida figura, que se tornou lendária. Dizem que era de Mato Grosso e, no Rio de Janeiro, assassinara o namorado de uma irmã sua, fugindo para Goiás. Quando uma nova versão do cangaço foi inaugurada em Goiás (com centenas de jagun-ços, especialmente da Bahia, semeando o terror, a soldo de chefes políticos), o capitão Siqueira foi convidado para a missão de acabar com a jagunçama que para lá afluiu após o massacre de 1919, quando a polícia goiana, no governo de Totó Caiado, matou vários chefes de família importantes, levando os descendentes a contratarem pistoleiros, que acabaram fazendo desmandos desautorizados e por conta própria.
De um momento para outro, Antônio César de Siqueira viu-se comissionado no posto de capitão e aquartelou-se em São José do Duro, passando a morar no casarão do chefe político Abílio Wolney (que se encontrava na Bahia, fugindo de perseguições).
Aproveitando-se da casa abandonada, o capitão abriu uma grande loja no cômodo em que funcionava a farmácia. E estabeleceu um estranho e rendoso, senão paradoxal, monopólio-oligopólio comercial: ninguém podia vender, senão a ele, nem comprar, senão dele.
Como chefe militar, ninguém tinha topete de levantar objeções ao seu mandonismo, embora o povo já estivesse desconfiado daquele curioso espécime de militar travestido de negociante, acobertado por um enorme contingente de soldados: “Havia soldados tropeiros, soldados vaqueiros, soldados pagos pelos cofres públicos para o desempenho das várias tarefas que o comércio exige” (“Quinta-Feira Sangrenta”, de Osvaldo Póvoa, pág. 136 e ss.).
Os soldados eram mandados para os municípios vizinhos para comprar farinha, rapadura, cereais, açúcar-da-terra e outros produtos para sortir e empório do capitão Siqueira, que despachava cargueiros de couro para a Bahia, de lá trazendo outras mercadorias.
Só ele vendia, só ele comprava. Soldado não via a cor do dinheiro, porque o capitão descontava nos fornecimentos, igual aos fazendeiros de hoje, que arrebanham trabalhadores e os exploram. O gado das pessoas envolvidas no “Barulho” do Duro, principalmente dos Wolney, era abatido, carneado e vendido, aberta e descaradamente.
Ninguém vendia um só palmo de terra ou um bezerro pé-duro sem a anuência do capitão, que para isto extorquia bons e valiosos contos de réis dos interessados na compra e venda, cobrando pela permissão.
Em 1924, por exemplo, o patriarca Casimiro Costa estava residindo em Barreiras-BA, fugindo das perseguições desencadeadas contra as pessoas de projeção no Duro, mesmo os que não houvessem participado do sangrento do episódio de 1919, e passava privações; apesar de possuir bens, precisava de recursos para sobreviver e custear o estudo dos filhos. E, impedido de ir ao Duro para deliberar sobre a venda de bens para safar-se da momentânea precisão, passou uma procuração para que sua esposa, Anísia Leal Costa, tratasse de todos os assuntos de interesse da família.
Com surpresa, D. Anísia soube que todos os bens da família estavam embargados, pois o capitão Siqueira não consentia, de forma alguma, que fossem vendidos “gados dos envolvidos no caso do Duro” e de Conceição, até que chegassem instruções de Vila Boa autoridades que trariam instruções a respeito.
Casimiro Costa, indignado, e com razão, com aquela inusitada situação, posto que nada tivera com o “Barulho”, escreveu ao desembargador Emílio Póvoa, indagando se havia algo impedindo-o de dispor de seus bens.
Enquanto aguardava resposta em Barreiras, chegou ao Duro o delegado Fernando de Aquino Ribeiro, nomeado para a 4a. Delegacia Regional, que viajou a Barreiras para entender-se com Casimiro Costa e autorizar a venda dos bens.
No entanto, o delegado era um membro da quadrilha do capitão, e exigiu oito contos de réis para liberar a venda de um imóvel, que representava trezentos bois na época. Anísia, coberta de razão, alegando que a medida era absurda, protestou, tendo o capitão sugerido a ela valer-se de um advogado para negociar a liberação dos bens; quando ela disse ia incumbir o advogado Luís Leite Ribeiro de resolver o assunto, o capitão, alegando que Luís Leite era “pessoa envolvida no caso do Duro”, recusou-o, indicando o ‘advogado” Antônio Cunha Pereira da Fonseca, que era outra importante figura da quadrilha montada pelo esperto capitão.
Mas quando D. Anísia afirmou que o delegado da 4a. Delegacia Regional, Fernando de Aquino Ribeiro, já havia autorizado a alienação, Siqueira mudou de cor, dizendo que Aquino era um aventureiro, sem credenciais para tal e que só através de Fonseca o caso poderia ser resolvido, apesar de o desembargador Emílio Póvoa ter informado não haver qualquer embargo aos bens de Casimiro Costa. Mesmo assim, o capitão exigiu que fossem pagos 26 mil réis (equivalente a 230 reses) à quadrilha. E só desta forma Casimiro conseguiu vender o que era seu. E, paga a propina, uma simples ordem do capitão ao sargento Avelino, destacado em Conceição, foi liberada a venda.
Esta história de propina, que ainda hoje impera no Brasil, tem suas raízes históricas.
Por dois anos e alguns meses o esperto capitão sugou a região, extorquiu o povo e cometeu arbitrariedades, sendo-lhe debitadas cerca de vinte execuções, todas sumárias e inadmissíveis: a pretexto de garantir a saída de certas pessoas da Vila, principalmente aquelas que relutavam em negociar com ele, iam dois ou três soldados até fora do povoado, e estes mandavam que o escoltado corresse, para, em seguida, atirar-lhe nas pernas. Se escapassem, sorte delas; mas se eram atingidas, caíam e eram sangradas pelos soldados, que ali as abandonavam aos urubus.
Isto aconteceu com os irmãos Apolinário e Estêvão Elesbão, Marcolino, Sebastião Frigi e seu filho Horácio Frigi, Manoel Três Paus e outros, tendo sido identificados como matadores de alguns deles os soldados Antônio Rocha, Manoel Pedro e Chico Mourão, capitaneados pelo san-guinário sargento Manduca, que cumpria cegamente as ordens de Siqueira.
Para que o leitor avalie o rombo que o ganancioso e atrabiliário capitão Siqueira deu na economia daquele município, basta dizer que em dezembro de 1925, seu pai, Manoel Siqueira, veio visitá-lo e levou nada menos que 600 contos de réis. Mas, trocando em miúdos: naquele tempo, um conto de réis comprava nada menos que 15 bois erados, de chifre virado! E só fazer as contas: 9 mil bois.
Depois de tudo o que fez, ele saiu impune, deixando uma triste e dolorosa fama, que até hoje é lembrada. A região de São José do Duro não podia nem piar fora do tom que ele estabelecia.
Muitos anos atrás, nas minhas especulações, soube que o capitão Siqueira viveu seus últimos dias, velhinho e caduco, enfurnado lá pelas bandas de Marabá. Mas certamente lúcido o sufici-ente para recordar-se de tudo o que fez.
(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – ABRACRIM – escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])