O canto da sereia
Redação DM
Publicado em 20 de fevereiro de 2018 às 00:15 | Atualizado há 7 anos
As grandes navegações revelaram ao mundo então conhecido a realidade de novas terras, culturas exóticas e hábitos nunca antes vistos. Nos séculos que as precederam, os mares, onde só os loucos se aventuravam, eram regiões obscuras, habitadas pela crença em seres fantásticos ou monstros aterradores. Reina, nessa fase, aquela disposição de espírito marcada pela curiosidade mística pelo feio.
Espíritos impressionáveis até viam o tridente de Netuno (Posseidon) qual representação alegórica dos dentes de monstros marinhos.
O gigante Adamastor, Canto V, estrofe 40, de Os Lusíadas, pode se incluir entre essas horrendas crenças. Leia:
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
C’um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
Cremos que Camões entendia essa sua personagem, pela repulsa e asco que inspira, como a personificação dos aspectos terríveis do mar ou dos perigos que ele encerrava para os navegantes patrícios.
Quão diferente que a de Adamastor, horrenda e grossa, soa a sublime voz das Sereias. “Tão suave que atraía os navegantes para os escolhos do mar da Sicília onde naufragavam e morriam”, indica o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete.
“Ser mitológico” cuja “maviosidade do canto atraía os navegantes para os baixios do mar. Mulher de canto suavíssimo. Mulher sedutora, que atrai fisicamente”.
Metade mulher, metade peixe? Nem sempre.
A antiguidade clássica deixa o leitor sabendo que “as sereias são demônios com corpo de pássaro e cabeça de mulher”, e seios descobertos, “habitam os recifes e são dotadas de um saber sobrenatural e de um canto que perturba os sentidos; por meio dele elas seduziam os navegadores para em seguida matá-los e devorá-los”. As referências aqui, dispostas entre aspas, foram tiradas do Dicionário de Símbolos de Herder Lexicon.
“A Idade Média, que representava as sereias quase sempre com cauda de peixe, via nelas um símbolo da sedução mundana e diabólica. Lorelei, personagem da mitologia alemã, é vista como uma sereia que habita os rochedos às margens do Reno”.
Por via dessas indicações, elas, as sereias, vão igualmente interpretadas como personificações dos perigos de alto mar ou dos riscos sedutores e funestos.
As eleições se aproximam e já alguns candidatos entoam o seu canto de sereia, a ver se seduzem o eleitorado, que tanto soa mais sedutor quanto mais ele tem ao alcance das mãos os recursos dispendiosos de um marketing político, que torna a melodia mais fatal ainda pra quem a ouve. Eis que se baralham os sentidos e quem vota não sabe dizer ao certo se o seu escolhido está sendo sincero ou não.
A gente tem vivos na lembrança dois cantos de sereia recentes. Um deles prometia, em sua campanha, caçar marajás; o outro, criar 12 milhões de empregos em seu mandato presidencial. Não foram mais que cantos ou promessas vãs. Nada disso sucedeu.
Até hoje não sei a razão pela qual um político precisa recorrer ao marketing? Pra seduzir o eleitor com os seus sofismas ou engodos? Um político assim configurado não passa de um produto exposto na prateleira. O eleitor não quer saber de engodos nem sofismas. Quer saber, sim, de um político que se mostre como ele realmente é, que se mostre de cara limpa e sem artifícios.
Uma vez que a gente enveredou pelo sofisma, bom seria transcrever o escritor, filósofo e ensaísta, Luiz Felipe Pondé, jornal O Popular, agora 12 de fevereiro de 2018. “Os sofistas eram aqueles caras que afirmavam ser ‘o homem a medida de todas as coisas’ – foi Protágoras (481 – 411 a.C.) quem disse isso. Simpáticos à democracia, esses pensadores ‘negavam a existência da verdade absoluta’, defendida por Platão. Protágoras venceu Platão: a democracia é sofista. […] Há uma impossibilidade estrutural na percepção da verdade na democracia. Platão acusava a democracia de ser retórica, argumentativa e demagógica. Ele tinha toda a razão”. E Pondé se apressa a ponderar (tem a ver com Pondé?) que “essa crítica de modo algum justifica uma defesa da tirania ou totalitarismo”.
Mas saiba, prezado (e)leitor, haja vista ser ‘o homem a medida de todas as coisas’, como diziam os sofistas, que há sempre uma sombra pairando sobre nós, melhor, o canto arriscado e embriagante das sereias. Não se deixe seduzir nem enganar por ele. Evite ser engolfado no pélago obscuro da desesperança.
(Pedro Nolasco de Araujo, escritor)