O causo de Antunim, lá de Aurora,
Diário da Manhã
Publicado em 4 de janeiro de 2018 às 22:35 | Atualizado há 7 anosNeste fim de 2017, dei uma esticada até Taguatinga, única comarca onde fui juiz, antes de assumir o Tribunal de Justiça. Lá, a par de visitar minha irmã Luzia, sempre revejo velhos amigos, dentre os quais Dr. Saulo Freire de Almeida, Manoel Messias, Marco Antônio, meus amigos do Fórum, como Maria Amorim, Belzy, Solange e, evidentemente, ele-Gercílio Godinho.
Aliás, a visita a Gercílio começou logo em Goiânia, pois ele, que ia para as festas de fim de ano com a família em Taguatinga, me segurou um dia na minha viagem, para ir com ele, o que me propiciou um dia inteiro de bate-papo no caminho, na companhia de sua família: sua esposa, Stella, e seu filho, Gercilinho, numa viagem de quase oitocentos quilômetros, que passaram num tapa, sem que sentíssemos passar o tempo.
Quando me assustei, já tinha passado da Chapada dos Veadeiros, que fica a pouco mais do meio do caminho e pouco tempo depois passávamos por Monte Alegre, Campos Belos, Combinado, Novo Alegre, Lavandeira e Aurora, e embora tivéssemos saído de Goiânia meio tarde e parando sempre pelo caminho, não chegamos muito de noitão, numa viagem tranquila e sem contratempos.
Comentávamos sobre minha passagem de juiz pela comarca, suas peculiaridades, o costume do povo, o que certamente enriqueceu esta minha vida de cronista bissexto.
Relembramos os casos de Domingos Chorão, de Jacinto e da intimação que Salviano deixou de fazer “porque o cavalo cansou” e das lamentações do outro oficial de Justiça, Tió, sempre clamando que seus salários eram minguados..
E comentávamos recente crônica minha em que um camarada queria que o cartorário riscasse seu nome do livro de registro de casamento, na suposição de que riscando o nome o casamento estaria desfeito.
Almoçando com a família de Gercílio e Tiãozinho de Abdias, vice-prefeito de Ponte Alta do Bom Jesus, um político muito ajeitado que conheci naquela ocasião, quando, no meio da conversa, Gercílio me contou um fato, que passou a ser um interessante causo, que ponho na conta de mais um fato ocorrido com gente de cartório de registro de casamento, que não deixa de ser interessante.
Como nunca gostei de escrever na base do “por ouvir dizer”, resolvi ir até Aurora para tirar a limpo as histórias que Gercílio me contou no almoço.
Lá, ele me ajuntou com duas pessoas que são arquivos vivos e disponíveis; passamos na casa de Tercílio, primeiro prefeito que foi eleito sem ser eleito (depois vou contar como se deu isto), e fomos bater na casa de Donizete Tavares, irmão de Zuzinha e Geovane Tavares e primo carnal de minha amiga Zoélia Tavares, que não conheço pessoalmente, mas parece que temos anos de convivência, pelo fato de ter ela feito um belíssimo e premiado trabalho literário sobre meu romance “Mandinga”. Antes de entabular o papo com meus dois informantes, passei na casa dos pais de Zoélia, o Zezé e dona Té, deixando com eles meus dois últimos livros para mandarem para a filha em Palmas.
Em Aurora, como toda cidade do interior, há duas famílias dominantes, os Tavares e os Severo, que se revezam sempre na política local.
Pois bem, escorado no que Donizete me contou, secundado pelas confirmações de Tercílio, que estava ali dejunto, fiz escora na verdade, ainda mais que Donizete hoje é titular do Cartório de Registro de Pessoas Naturais palco do ocorrido há quase setenta anos e tem tudo devidamente registrado nos conformes da lei.
Mas vão escutando.
Lá pelos anos 50, um senhor por nome Selvino, morador nas imediações do Mosquito, que faz divisa de Aurora do Tocantins-TO com Campos Belos-GO, vinha numa vereda do caminho, quando flagrou Antônio Ferreira de Souza, conhecido por Antunim, em despretensioso ato libidinoso com uma tal de Alvina, que não era prendada em belezura pela natureza, e ainda por cima era meio abobozada, daquele tipo de gente sem catadura que só faltava mesmo era babar para inteirar as medidas.
Não conto nada! Selvino, que era gente dos Severo, e não sei se tinha alguma diferença com Antunim, resolveu botar pra frente aquele caso e, sem ter nada com aquilo, correu na casa do subdelegado João Severo e emprenhou a autoridade pelos ouvidos com uma conversa atravessada, que o fez correr até Taguatinga, de que Aurora (ainda chamada de Arraial da Manhã), era distrito, e comunicou o fato ao rígido delegado Jeremias Xavier Guimarães, que intimou Antunim a salvar a honra da Alvina, obrigando-o a casar-se com a mouca, de papel passado.
Antunim nem convivia com a esposa, pois na verdade nada tinham de afinidades, e – cidadezinha pequena, fofocas grandes -, ele se sentia incomodado com seu estado civil imposto pelas circunstâncias, até que surgiu, para sua valência, Zé de Cota, um tipo popular da cidade, que vivia enfronhado nas intimidades com a alta roda e frequentava sem embaraço, e sem ser funcionário, o Cartório de Anísio Alfredo Lima (hoje de Donizete) onde estava consignado o indesejado assentamento.
Aproveitando uma distração do notário, arrancou a dita folha daquele livrão de quase meio metro com capa de papelão revestida de tecido. E com aquele gesto, Antunim estava literalmente solteiro outra vez. Zé de Cota parece que nem cobrou para fazer o favorzão a Antunim.
Mas a estripulia de Zé de Cota vazou, ou Anísio teve uma desconfiança e correu no livro, onde constatou a subtração da folha que botara Antunim no rol dos casados. E espalhou na cidade o fato.
E o delegado meteu Zé de Cota na cadeia por uns dias, até apurar o malfeito, que acabou levando Antunim pro xadrez em Taguatinga, por ordem do justiceiro delegado Jeremias. Zé de Cota, envergonhado com aquela situação, tratou de fugir pra longe, onde melhorou de sorte e dizem que até enricou, e tempos depois veio buscar a família.
Como fazer agora? Não havia prova de que Antunim era casado, pois Zé de Cota dera consumiço no registro, e o delegado não aceitava ser desmoralizado, ainda mais tendo ordenado a prisão de uma pessoa legalmente inocente, pois cadê a prova do casamento?
Não contou conversa: mandou fazer um novo casamento de Antunim com Alvina, abrindo novo registro no cartório. Se não casasse de novo iria mofar na cadeia.
Em vez de livrar-se da indesejada esposa, acabou foi tendo que se casar de novo com ela, para poder obter um alvará de soltura.
E em ato do delegado, sem a Justiça no meio.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])