O circo mambembe do STF, onde se encenam “gilmarzadas” e “toffoladas”
Diário da Manhã
Publicado em 17 de agosto de 2018 às 23:05 | Atualizado há 7 anos
Assistimos no ano passado a uma sessão do STF, que discutia a questão do foro privilegiado, que veio, mais uma vez, escancarar a desfaçatez com que alguns ministros brincam com a Justiça. O leitor pode não ter observado, mas desde 2002, quando as sessões começaram a ser transmitidas ao vivo pela TV Justiça, os ministros do STF passaram a escrever votos mais longos, com acórdãos ficando, em média, 26 páginas a mais, aumentando o tempo de leitura e prejudicando a eficiência do tribunal. Tudo isto não é devido a eventual dificuldade técnico-jurídica da questão, mas tão somente para aparecerem mais tempo na TV.
Muitas vezes, um ministro, nas discussões preliminares de um voto, passa um considerável tempo falando e quando se pensa que ele vai proferir o esperado voto, ele diz que, diante de uma dúvida qualquer, vai levar o processo com vista, decepcionando quantos assistem ao julgamento.
Pois bem, voltando ao julgamento do foro privilegiado: a sessão inicial ocorreu em junho de 2017, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vista, trazendo os autos na sessão do último dia 23 de novembro. Os sete ministros que seguiram integralmente o voto do relator, Roberto Barroso foram Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello. Alexandre de Moraes propôs uma restrição menor do foro, divergindo de Barroso.
Aí, embora com a votação praticamente definida, o ministro Dias Toffoli, na hora de votar, quis ganhar seus minutos de glória televisiva e talvez até justificar sua ascensão àquela Corte, apresentou argumentos que aparentemente o levariam a votar, mas, alegando que tinha um compromisso no posto médico do STF, precisava “refletir melhor”, levou o processo com vista, impedindo que se concluísse aquele importante julgamento, que, se terminasse naquele momento, seria desastroso para os malfeitores do Congresso, que pleiteiam permanecer na mamata. E tal qual Gilmar Mendes fez no caso do financiamento de campanhas, Toffoli fez no foro privilegiado, para deixar o Planalto em situação mais cômoda. E cozinhou o caso em água morna até passarem as eleições. Toffoli só retornou com o processo a julgamento em 3 de maio de 2118, propondo a restrição do foro a outras autoridades que dispõem da prerrogativa. A expectativa era grande, mas a montanha pariu um rato.
Misturam-se as molecagens do Legislativo com as do Judiciário: no Legislativo existe a figura da “obstrução parlamentar”, para evitar uma votação, e agora inventaram no STF a figura do “pedido de vista obstrutivo”, como bem definiu o comentarista político Merval Pereira. É quando não interessa ao governo decidir um assunto e deixar em banho-maria até esfriarem as pressões. E como os tais “encontros fora da agenda” do Jaburu estão vazando mais do que peneira, soube-se que o pedido de vista de Toffoli, seguiu um roteiro previamente organizado: depois de encontro com o presidente Michel Temer “fora da agenda”, ficou acertado Toffoli impedir que a decisão majoritária do plenário do Supremo se materializasse.
Dias Toffoli podia segurar o processo sobre o foro privilegiado por tempo indeterminado. O pedido obstrutivo tem mais uma característica: o ministro, para atingir seu objetivo, fica com o processo vários meses, na tentativa de tornar inútil ou juridicamente prejudicada a decisão da maioria. O leitor, se tiver a mesma memória que tenho, deve lembrar-se de que o próprio Toffoli fizera anteriormente um pedido extemporâneo de vista do processo que definia que políticos na linha de substituição do presidente da República não podem ser réus. Embora essa decisão já tivesse maioria em plenário, Toffoli pediu vista e, passadas nove sessões, não devolveu o processo, embora o regimento do STF seja expresso quando diz que o processo deve ser devolvido até a segunda sessão ordinária subsequente. Mas os semideuses interpretam as normas como lhes convém, pois, para eles, a Constituição é como a Bíblia: cada um a interpreta como lhe for mais conveniente. Se os chamados guardiães da Constituição agem assim, a quem vamos nos queixar?
Tanto no STJ como no STF, sem se falar em quase todos os tribunais, muitos processos têm julgamentos interrompidos por pedidos de vista de seus ministros, o que retarda o julgamento das ações. A média de tempo entre o pedido e o julgamento de um processo, às vezes ultrapassa 1000 dias, quase três anos. E houve um pedido de vista no Supremo, cujo julgamento só foi retomado 2.034 dias depois (mais de cinco anos).
Segundo o STJ, em novembro de 2014 havia 345 processos com o julgamento paralisado por pedidos de vista ainda não devolvidos por ministros do tribunal. A justificativa “oficial” da demora no retorno dos autos a julgamento seria a complexidade do tema, mas na verdade é para propiciar às partes chegarem a um acordo – não entre si – mas com o julgador, que não pede vista por amor à Justiça, mas ao bolso.
O pedido de vista aparentemente serve para o ministro examinar melhor o processo antes de votar. Entre os processos com tramitação paralisada por esse motivo, há vários assuntos debatidos, que vão desde a legalidade da cobrança do IPTU em cemitério até a possibilidade de empresas financiarem campanhas eleitorais.
Isto, em tese, pois antes do julgamento o relator encaminha aos votantes o relatório, para que eles se inteirem do assunto. Mas um ministro pode pedir vista para melhor compreender a matéria; outras vezes, quando a situação se acalora, a vista serve para “esfriar” os ânimos, ou mesmo por razões políticas (como ocorreu com o famoso processo do financiamento de campanhas, a ADI 4.650, quando o ministro Gilmar Mendes ficou mais de um ano com vistas de um processo já praticamente decidido); há, ainda, aqueles pedidos, quando envolvem muito dinheiro, e alguém pede vista, seguramente talvez para esperar que uma parte “se manifeste”.
Enquanto Gilmar sentava em cima daquele julgamento, tramitava na Câmara dos Deputados a PEC 352, que regulamentava o financiamento privado de campanhas e era a “menina dos olhos” de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara (e hoje hóspede do Complexo Penitenciário de Pinhais), maior rival da presidente Dilma Rousseff. O Planalto, por seu turno, era contra a PEC 352 bem como contra as doações de empresas e a favor do financiamento público. E Gilmar Mendes, criminosamente, segurou o julgamento e as eleições se realizaram financiadas como queriam.
Mas a situação é bem pior do que se imagina. No STF, quase 300 processos estão paralisados por pedidos de vista, havendo pedido de vista de 1998, ainda da relatoria do ministro Nelson Jobim, que se aposentou há onze anos, deixando para trás esse processo. O seu regimento é claro: quando um ministro pede vista de um processo, precisa devolvê-lo ao plenário até duas sessões depois para que o julgamento seja retomado. Talvez seja a regra mais ignorada do tribunal.
Dos ministros em atividade no Supremo, quem coleciona o maior número de pedidos de vista é Luís Roberto Barroso, com 31 processos. O ministro Ayres Britto, aposentado em 2012, e sucedido por Barroso, alcançou a marca de 76 pedidos de vista, dos quais 70 não foram devolvidos antes de ele deixar o tribunal. Gilmar Mendes tem 19 pedidos de vista, dos quais só três foram devolvidos. Dias Toffoli tem 16, com quatro devolvidos para julgamento.
O ministro Marco Aurélio Mello é dos que menos pedem vista. Dos oito pedidos, devolveu sete; ficou um processo que chegou ao tribunal em 1995 e trata do registro de uma propriedade no Tocantins.
Um dos processos que teve pedido de vista há mais tempo está nas mãos do decano da Corte, Celso de Mello. A vista foi solicitada em maio de 2008 e o processo é do ano anterior. Trata-se do recurso da proprietária de um cemitério em Santo André (SP), que questiona a cobrança do IPTU pelo município.
Em 27 de outubro de 2015, o CNJ baixou a Resolução 202/2015, que, após 11 “considerandos”, estabeleceu o prazo máximo de 10 dias para devolução de voto-vista, prorrogável por igual tempo, mediante justificativa.
Isto seria, em tese, aplicável aos 11 ministros do STF, 33 ministros do STJ, 15 ministros do STM, no mínimo, sete desembargadores federais em cada um dos 5 TRF´s, 27 ministros no TST, e assim por diante; só a Justiça do Trabalho tem 24 Tribunais Regionais; os Tribunais de Justiça são 27 e só o de São Paulo tem 360 desembargadores.
A norma do CNJ limita-se a dizer que se o autor do pedido de vista no prazo já prorrogado não levar o processo a julgamento, será designado substituto, mas não estabelece penalidade. Como se sabe, o CNJ só pune juízes e desembargadores, seguramente porque, para este efeito, ministro não é magistrado. Na verdade, muitos só dizem que são, pois, tendo entrado “pela janela”, nada sabem e fazem apenas o que lhes mandam.
E mais uma vez quem fica no prejuízo é o jurisdicionado, pois quem vai compelir um ministro a levar um processo de volta a julgamento?
Apesar das onze considerações da resolução do CNJ, podem anotar: foi mais um risco n´água.
E esses ministros folgados e parciais estão cometendo um crime capitulado no artigo 319 do Código Penal (“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”). E está mais do que tipificado o crime: mas para eles é preciso atender aos padrinhos que os levaram para lá ou botar uma graninha no bolso, pois ninguém é de ferro, principalmente neste país, em que as investigações são seletivas e não atingem os maiores bandidos de toga.
Mas quem vai puni-los, se estão acima da lei?
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])