Opinião

O consumido – II parte

Redação DM

Publicado em 24 de janeiro de 2017 às 00:37 | Atualizado há 8 anos

(…)

Depois que a tarde desenhara uma bela aquarela do dia, repassando o pincel para a noite, para que esta pudesse iniciar os retoques finais com os seus tons escuros, um baque na porta interrompeu a torrente e o corpo cambaleante do marido entrou segurando como um troféu o encarte do jornal.

– Olha aqui, Teresssa… – Não conseguindo terminar a frase, despencou o corpanzil no sofá, com ânsias de vomitar a sogra, o patrão Euclides, os amigos do bar, a esposa, os filhos, o encarte…

No quintal a sogra, ajuntando as folhas secas, acrescentava ao entulho outro domingo perdido para o energúmeno do genro. Este, costumeiramente aos domingos, deixava-se ficar no bar até mais tarde, voltando desmaiava no sofá, onde permanecia esquecido como frio  almoço. Invisível é o tempo para os embriagados e esquecidos.

Na segunda-feira levantou com a secura da boca, o estômago pedia algo para tirar o gosto do torresmo que ficara. Dormira no sofá, por um lado fora bom, noite silenciosa.  Às vezes no quarto, quando não era uma filha, era outra que chorava, não se sabe se de fome ou se de outra coisa que as incomodava e a ele também.

Lembrou de que tivera um sonho aterrador. Havia uma cobra sob sua cama, cuja língua viscosa fora subindo sinuosa por ela ao som de uma música árabe que vinha de um aparelho de som em seu quarto. A língua vibrava como uma odalisca. Mas a cama era de fato uma mesa de sinuca e a bola treze a cabeça de Valdomiro. A língua, como se fosse o taco, atingira o bolão, fazendo-a bater violentamente contra a sua cabeça, que, por sua vez, ia-se chocando com várias outras bolas, que eram as cabeças de seus amigos do bar. Enquanto as cabeças destes iam rolando rumo às caçapas, a sua já despencava em outra. Tentou segurar em vão nas bordas, mas lembrou-se de que era apenas uma cabeça.

Foi deslizando inapelavelmente para o fundo da caçapa, que era um abismo sem fim. Sua queda era infinita, indo descendo no abismo escuro, de cujas paredes saiam enormes espinhos, que o iam espetando à medida que realizava sua descida vertiginosa.  Vez por outra, ao invés de espinho, uma serpente dava um bote tentando engolir a cabeça. Quando uma conseguiu abocanhá-la e fixa-la para inocular o veneno mortal em seu cérebro, ele despertou. Um casal de gato no telhado, numa algazarra medonha, fazendo estranhos e irritantes miados, e o cantar estridente de um galo do vizinho acionaram ainda mais o despertador biológico de Valdomiro. Espreguiçou-se, segurou com as mãos a cabeça, para ver se ela estava firme no pescoço.

Sentou-se num tamborete, pensativo. Ainda lhe fervilhava no cérebro a música do sonho, que fizera subir a língua viscosa. Se pudesse desligá-la definitivamente, mas ela continuava martelando em sua mente, mais do que outros detalhes do sonho. Será que alguém no mundo não gostava de música? Nunca havia pensado nisso. Naquele momento ele era esse alguém no mundo que não gostava de música. Detestou sua conclusão, amava a música. Talvez o senhor Euclides, o patrão, não gostasse. Homem mais esquisito aquele, frio e calculista, um verdadeiro departamento de contabilidade.

Pensava ainda em como era azarado, as coisas nunca dando certo: se caísse de costas quebrava o nariz.  Tem graça? Afinal, só lhe sobravam os pesadelos. Por que não tinha sonhos doces, que tornassem menos cinzenta a aridez do outro dia, menos nua e crua a realidade da sobrevivência, onde o que importava era mandar para a caçapa os segundos, os minutos, as horas, o corpo vendido no trabalho? E neste instante, levantou-se maquinalmente. Lembrou-se das suas princesas. Ao trabalho.

A sogra havia coado um café, que fumegava no fogão. Tomou aos goles, na parcimônia, os pensamentos levados pela fumaça. Fez careta, de tanto amargo, parece que era de propósito o que a víbora fazia. Custava-lhe adoçar um pouco a sua vida?

Antes de ganhar a rua, olhou para o quintal onde a sogra, com a mania de quintal sempre limpo, recomeçava a varrer a folhas.  Limpou a vista e a viu encarando-o, disparando dos olhos raios mortíferos contra ele. Parecia julgá-lo o pior dos homens por ser pobre. Era defeito ser pobre? Era defeito ser ladrão, desonesto, prevaricador, corrupto… Mas ser pobre, nunca ouvira falar. E, apoderando-se de sua maleta de ferramentas, ganhou definitivamente o caminho da firma de prestação de serviços, que o aguardava para cumprir sua honrada missão de encanador.

O outdoor amanhecera na esquina e Valdomiro desta vez o vira mais nítido. Lá estava estampado o aparelho de som. Uma entrada mais vinte e quatro parcelas. Os juros embutidos nas letras menores. Que se danassem os juros! No ônibus lotado, a imagem do outdoor ficando para trás. No aperto, a maleta atrapalhando, mas o pensamento do encanador confortável para pensar naquele retângulo inebriante onde ora aparecia a imagem do aparelho de som, ora o olho ameaçador da sogra, ora suas duas princesas, roupas surradas, amareladas de verminose. Víbora!

A última garfada do almoço foi levada à boca, em seguida o garfo abandonado sobre a marmita. Valdomiro meneou a cabeça, limpando, com a manga da camisa, a testa nédia. Inquieto, levantou-se num sobressalto e se dirigiu à sala do senhor Amadeus.

– Olhai meu chefe preferido, comunico ao distinto que estou indo até as Casas do Povo, a duas quadras daqui. Aproveito o descanso do almoço e em seguida estou de volta. Um pulinho.

– Está bem. Mas veja lá: você só tem uma hora. Sabe que o patrão é casca grossa em questão de horário. Se algum cliente ligar com urgência e você não se encontra, aí meu amigo…  Segura a fera. O homem vira o cão chupando manga.

– Deixa comigo. Fica frio, que daqui a uma hora, esta simpática figura estará na vossa presença, chefia.

Atravessou a porta rumo à rua. Às favas o patrão, a sogra, todo mundo. A ideia fixara-se de vez. Ia ter o seu tão sonhado aparelho de som. Passaria aperto com as prestações, mas os meses passam voando. Valeria o sacrifício. Antes de chegar à loja, um menino o despertou, dizendo-lhe: vai graxa aí, moço? Uma menina, no sinaleiro, pedia trocados aos motoristas. Os pés criaram asas.

Estacou de repente na calçada, frente à loja. Lembrou-se de suas filhas, soavam-lhe como repiques de sino as palavras da sogra: roupas surradas, amareladas de verminose…  Sua cabeça estava oca, pensou em dar meia-volta, mas os inconsequentes pés o levaram o desobedeciam. Viu-se no interior da loja. Trazia consigo o encarte que o Pereira lhe dera. Havia nele muitos modelos, os preços aumentando conforme as características. Os olhos saltando de um para  outro, sem conseguir fixar-se em nenhum. Até que conseguiu enxergar o que estava na promoção. Com a caneta, fez um círculo em sua volta, demarcando-o.

A loja estava cheia, muitos viram a promoção. A fila do cadastro estava enorme: Valdomiro não contava com este fato, mas deixou-se ficar em último. Os últimos seriam os primeiros? Asneira, nem sempre. Olhou para trás, já não era mais o último. Vez por outra abria o encarte para certificar-se do modelo escolhido. Olhares curiosos dos vizinhos da fila. Ameaçavam pedi-lo emprestado, o encanador enrolou-o sob o braço, depois tornava a abri-lo. Notando novamente os olhares vorazes, tornava a fechá-lo. E o relógio na parede da loja marcava, com seus ponteiros implacáveis, o tempo, a panaceia para as ambições e os infortúnios do homem.

Na firma de prestação de serviços, ao telefone, Amadeus ouve impropérios de toda sorte:

– Eu quero é falar com o seu patrão. Chega de me enrolar. Faz duas horas que liguei e nada!

– Tenha paciência, que já está chegando.

De sua sala o patrão, o senhor Euclides, percebe o tom da conversa:

– O que está acontecendo? Transfira-me a ligação.

O senhor Amadeus bem que tentou protelar o atendimento, mas Valdomiro não chegava. E era o único encanador da firma. Mas a conversa fora percebida pelo patrão e agora a água estava indo para o ralo.

– Pois fique sabendo, senhor Euclides que rompimento do cano se deu há duas horas e não houve atendimento. Meu apartamento está que é pura água.  Desta vez vocês passaram da conta. Considere cancelado o nosso contrato. Vou tomar minhas providências. E passe muito bem, seu embromador.

E ouviu o baque do telefone desligado na sua cara. Saindo fogo pelas ventas, adentrou a sala do senhor Amadeus para saber do encanador. Não tendo outra saída, o chefe explicou tudo.

– Mas bem que o avisei. Ele prometeu que estaria aqui na hora certa.

– Vocês são uns incompetentes! Sabem que sempre surgem emergências…  Quer saber? Mande já bater a carta de demissão daquele irresponsável! E da próxima vez, mando bater a sua! – E saiu cuspindo marimbondos, a parede tremendo com a batida da porta.

Nome completo, endereço, carteira de identidade, CPF, comprovante de renda, o de praxe para a aprovação do crédito.  Telefone de duas pessoas para referência. Mãos ansiosas nos bolsos a procura dos documentos. O do Nestor e o do Pereira, anota aí. Procurou o encarte novamente para não esquecer o modelo pretendido. Lembrou-se de que o deixara sobre a mesa. Onde fora parar? Não estava mais lá. Alguém o havia levado. Deixa pra lá, o importante é o aparelho, figura não toca música. Mas qual era mesmo? Não se lembrava. Finalmente a notícia: crédito aprovado. Grandes camaradas, o Nestor e o Pereira, deram sua ficha limpinha da silva. Foi atendido finalmente pelo vendedor.

Por aqui, senhor. Queria o da promoção, alertou. Esse tinha se esgotado, não tem mais no estoque. Havia outros modelos, evidente, mais caros. Que azar o seu. Mas já que estava ali, levaria outro. Enfim, escolheu: toca CD, pen-drive, 200 Watts de potência etecetera e tal. Maravilhados com a tecnologia de última geração, seus olhos eram pura satisfação. Finalmente a compra finalizada. O carnê chegaria pelo correio. O produto aguardasse em sua casa, o caminhão de entrega levaria. Ponto de referência? Dobrando a direita, primeira rua depois do bar Gente Fina, quinta casa à esquerda, um portão já meio enferrujado, cor platina. Dispensando-o, disse o vendedor:

– Bela compra, sua esposa vai adorar, cliente.

– Sim senhor. Obrigado. Boa tarde.

Antes de sair, Valdomiro ainda andou pela loja, maravilhando-se com outros eletrodomésticos. O quanto não deixaria feliz a Teresa uma máquina de lavar? E uma TV de 32 polegadas? No momento, inatingível. Para descansar o corpo cansado após o dia de trabalho, não caia bem em sua sala aquele sofá aconchegante? Quanta coisa mais útil do que um aparelho de som! Não. Nada de arrependimento.

O aparelho de som também serviria para alegrar os seus finais de semana. Os amigos juntos bebendo umas e outras, jogando carteado, contando piadas, ao som da dupla do momento. Sua mulher gostava de uma música. Qual era mesmo o nome da dupla? Ah, sim, lembrou. Ao sair do serviço, passaria na loja para comprar o disco.  Enquanto o tempo, o terror dos esquecidos, guiava os passos do encanador rumo à Firma, ele ia planejando o seu próximo e inesquecível domingo com a mulher e os amigos.

 

(Joaquim de Azevedo Machado, professor e escritor – [email protected])

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