O Estado não cria recursos
Redação DM
Publicado em 7 de julho de 2017 às 00:07 | Atualizado há 8 anos
A maior ilusão de uma “esquerda primitiva” é de que o Estado é mágico e que, através de seu poder incumbente transitório, pode criar recursos. Nada é mais falso. E nada tem consequências mais deletérias sobre o processo de construção de uma sociedade civilizada, onde devem coexistir: 1. A plena liberdade de iniciativa. 2. A relativa igualdade de oportunidades, sob a coordenação de um Estado forte. 3. Um Estado forte, constitucionalmente limitado, capaz de controlar a organização da economia (difusa em toda a atividade social) para obter a eficiência produtiva que permita a todo cidadão gozar os dois valores anteriores.
É preciso insistir: o máximo que o Estado pode fazer é redistribuir, não sem antes consumir uma parte, o que já foi produzido, somado ao que ele eventualmente ganhou de presente (como é o caso do aumento de sua relação de troca), e ao que ele tomou emprestado de um vizinho, que um dia será devolvido com juros. O problema é que o desenvolvimento econômico (que é condição necessária, ainda que não suficiente, para que seja inclusivo e equânime) depende, basicamente, de como a sociedade utiliza o seu excedente produtivo na acumulação dos investimentos.
Secular experiência empírica mostra que a velocidade do aumento da produtividade do trabalho vivo depende, basicamente, da capacidade da sociedade de inventar novas tecnologias e incorporá-las ao aumento do estoque de capital à disposição de cada trabalhador com capacidade para operá-lo.
O desenvolvimento econômico é apenas o outro nome do aumento da produtividade do trabalho vivo.
Sua continuidade depende de uma permanente harmonia entre o que a sociedade consome para sua sobrevivência e reprodução e o que ela destina à acumulação do estoque dos bens de produção – o investimento. Pois bem, é essa harmonia que a “esquerda primitiva” quebra quando o seu “populismo” recusa as limitações físicas que constrangem a atividade econômica.
No primeiro ano do governo Temer, o Brasil tomou conhecimento de tais dificuldades e, com a organização de um parlamentarismo de “ocasião”, ele produziu a aprovação de um número substancial de medidas micro e macroeconômicas, cujos efeitos se farão sentir no futuro. Infelizmente, os recentes eventos políticos diminuíram a capacidade do governo de prosseguir com as duas reformas fundamentais que estão encaminhadas: a trabalhista e a da Previdência.
No que respeita à reforma trabalhista, o projeto é razoável. Ajusta o mercado de trabalho às mudanças estruturais recentes da própria atividade. Deve melhorar a empregabilidade em alguns setores. É pouco provável, entretanto, que acelere substancialmente o emprego, mas acomodará melhor o equilíbrio do mercado de trabalho com a flexibilização do salário. Não se trata de um projeto “Hartz”, aquele que ajudou a Alemanha (e que Emmanuel Macron quer introduzir na França), mesmo porque a organização do mercado de trabalho alemão deixa o Estado de fora.
É produto de contrato entre os seus participantes privados: sindicatos sérios, associações de empresários e conselhos de fábrica, que existem em empresas com mais de cinco empregados. É a transparência dos programas de produção e exportação de cada empresa, que combinam os interesses do capital e do trabalho na distribuição “razoável” dos benefícios entre o lucro e o salário, que dão “racionalidade” e promovem a conciliação dos seus interesses.
Em certa medida, essa será, talvez, uma das consequências do nosso aggiornamento da legislação trabalhista, à medida que tivermos “paridade de poder” na negociação salarial. Isso exigirá sindicatos “sérios” sem monopólio espacial e sem imposto sindical, que não “negociem” os interesses de seus membros com o capital.
Quanto à reforma da Previdência, sua maior oposição vem do alto escalão do funcionalismo federal, que se apropriou do poder em Brasília. Trata-se de uma “elite extrativista” que “conquistou” no grito direitos “mal” adquiridos, desde 1988, graças ao laxismo e à covardia dos governos de plantão, ajudados pela inacreditável cegueira dos trabalhadores que aceitam alimentá-la.
No caso da Previdência, demografia é destino. O sistema atual caminha inexoravelmente para sua falência. Sua reforma será feita, “conosco” ou “semnosco”. Se não agora, no futuro não muito distante, na maior ordem, ou na maior desordem, para gáudio dos que defendem a ética da “convicção” na solução dos nossos problemas.
(Delfim Netto. Formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal)