Opinião

O fim da austeridade

Diário da Manhã

Publicado em 3 de março de 2018 às 23:15 | Atualizado há 7 anos

A per­ple­xi­da­de che­gou aos mer­ca­dos fi­nan­cei­ros. Des­de 2016 ha­via si­nais de que a eco­no­mia mun­di­al es­ta­va en­tran­do em fa­se de cres­ci­men­to e mos­tra­va ace­le­ra­ção. Há um fa­to in­te­res­san­te quan­do con­si­de­ra­mos o bai­xo de­sem­pre­go (en­tre 4% e 5%) nos EUA e na Ale­ma­nha, acom­pa­nha­dos do cres­ci­men­to ge­ne­ra­li­za­do da eco­no­mia em to­dos os paí­ses em 2018 e 2019. Pa­re­ce que a re­la­ção en­tre o ní­vel de de­sem­pre­go e a ta­xa de in­fla­ção, a fa­mo­sa cur­va de Phil­lips, dei­xou de fun­cio­nar co­mo nos ve­lhos tem­pos.

Quan­do o bai­xo cres­ci­men­to ao lon­go de al­guns anos se trans­for­ma no “nor­mal”, o tra­ba­lha­dor aco­mo­da-se e con­for­ma-se com o em­pre­go pre­cá­rio. A mar­gem pa­ra exi­gir au­men­to de sa­lá­rio (com bai­xo cres­ci­men­to) é mui­to res­tri­ta, e is­so al­te­ra a in­cli­na­ção da cur­va de Phil­lips em res­pos­ta à va­ri­a­ção da ta­xa de de­sem­pre­go.

Co­mo não há mal que du­re pa­ra sem­pre nem bem que não se aca­be, um dia a eco­no­mia re­cu­pe­ra sua ca­pa­ci­da­de de cres­ci­men­to e o ní­vel de em­pre­go ten­de a au­men­tar, o que de­vol­ve po­der de ne­go­ci­a­ção aos tra­ba­lha­do­res. Em ge­ral, de­pois de al­guns atri­tos com o ca­pi­tal, ter­mi­na-se com um au­men­to de sa­lá­ri­os que, mais dia me­nos dia, aca­ba se trans­fe­rin­do (em cer­ta me­di­da) pa­ra os pre­ços e lo­go pa­ra a ta­xa de in­fla­ção (me­nor do que a do sa­lá­rio).

O pro­ble­ma é que o no­vo “nor­mal” (bai­xo cres­ci­men­to, bai­xo in­ves­ti­men­to e con­for­mis­mo com o au­men­to do em­pre­go de bai­xa qua­li­da­de) pro­duz uma re­du­ção da par­ti­ci­pa­ção dos sa­lá­ri­os na ren­da na­ci­o­nal e po­de apri­si­o­nar a eco­no­mia nu­ma ar­ma­di­lha, su­ge­rin­do uma es­pé­cie de “es­tag­na­ção se­cu­lar”.

Al­gu­ma coi­sa es­tá mu­dan­do. Em 2 de fe­ve­rei­ro des­te ano, o “mer­ca­do fi­nan­cei­ro” to­mou um sus­to! O cha­ma­do VIX, o ín­di­ce de vo­la­ti­li­da­de que há mais de dois anos es­ta­cio­na­ra em ní­veis his­to­ri­ca­men­te bai­xís­si­mos su­bi­ta­men­te, em um dia su­biu 116% e na­da me­nos que 172% com re­la­ção à mé­dia de 2015 a 2018. Em se­gui­da, o pre­ço das ações veio abai­xo.

Des­de o se­gun­do tri­mes­tre de 2013, a pres­são da de­man­da nos úl­ti­mos anos cri­ou, em mé­dia, 2,5 mi­lhões de em­pre­gos nos EUA e re­du­ziu o ní­vel de de­sem­pre­go sem cau­sar efei­tos sen­sí­veis so­bre os sa­lá­ri­os. En­tre ja­nei­ro de 2017 e seu ho­mó­lo­go de 2018, en­tre­tan­to, os sa­lá­ri­os por ho­ra cres­ce­ram 3%, “acor­dan­do” a cur­va de Phil­lips, su­ge­rin­do um fu­tu­ro de mai­or in­fla­ção e re­cu­pe­ra­ção (ain­da que di­mi­nu­ta) da par­ti­ci­pa­ção dos sa­lá­ri­os na ren­da na­ci­o­nal, o que se­rá ex­tre­ma­men­te sa­u­dá­vel pa­ra o cres­ci­men­to do PIB.

Mais im­por­tan­te do que is­so, na Ale­ma­nha, o úl­ti­mo acor­do co­le­ti­vo en­tre o “ca­pi­tal” e o “tra­ba­lho” (ain­da par­ci­al ge­o­gra­fi­ca­men­te) re­sul­tou em au­men­to sa­la­ri­al e na re­du­ção da jor­na­da de tra­ba­lho fle­xí­vel pa­ra até 28 ho­ras por se­ma­na. O au­men­to con­quis­ta­do de sa­lá­rio se­rá mai­or do que 4% a par­tir de abril, além de ou­tras con­ces­sões dis­tri­bu­í­das até 2020.

Es­se acor­do, ob­ti­do de­pois de vá­ri­as gre­ves in­te­li­gen­tes e bem di­ri­gi­das que cau­sa­ram gra­ves da­nos às em­pre­sas, pro­va­vel­men­te vai se ge­ne­ra­li­zar pe­la fle­xi­bi­li­da­de ne­go­ci­al da­da às em­pre­sas e aos tra­ba­lha­do­res.

Es­sa pos­si­bi­li­da­de cres­ceu ago­ra que An­ge­la Merkel te­ve de fa­zer um acor­do com o Par­ti­do So­ci­al De­mo­cra­ta (SPD), que ad­mi­nis­tra­rá as po­lí­ti­cas fi­nan­cei­ras e do ex­te­ri­or. Seu lí­der, Mar­tin Schulz, anun­ciou, ali­ás, o fim do “dog­ma” da aus­te­ri­da­de, o que po­de ser bom pa­ra a Ale­ma­nha e pa­ra o mun­do.

Ou­tro fa­to que de­ve­ria nos le­var a uma re­fle­xão é que a Ale­ma­nha ope­ra­rá, no pe­rí­o­do de 2018 a 2021, com ape­nas 15 mi­nis­té­ri­os (me­ta­de dos nos­sos), en­tre­gues aos par­ti­dos So­ci­al-De­mo­cra­ta (6), Uni­ão De­mo­cra­ta-Cris­tã (6) e Uni­ão So­ci­al-Cris­tã (3), o que ga­ran­ti­rá ain­da uma mai­o­ria pa­ra se as­so­ciar ao fran­cês Em­ma­nu­el Ma­cron na de­fe­sa e no for­ta­le­ci­men­to da Uni­ão Eu­ro­peia. Por que, com 30 mi­nis­té­ri­os, pre­ci­sa­mos de mais um?

O “so­lu­ço” do 2 de fe­ve­rei­ro tal­vez mar­que o iní­cio de uma re­cu­pe­ra­ção mais só­li­da e uma mais equâ­ni­me dis­tri­bui­ção dos be­ne­fí­ci­os do cres­ci­men­to, que se de­te­rio­ra­ram des­de os anos 80 do sé­cu­lo pas­sa­do, quan­do um equí­vo­co po­lí­ti­co apro­fun­da­do nes­te sé­cu­lo (as­ses­so­ra­do por eco­no­mis­tas que se pre­ten­dem “ci­en­tis­tas”) per­mi­tiu que o sis­te­ma fi­nan­cei­ro des­re­gu­la­do as­su­mis­se o con­tro­le da eco­no­mia re­al e pro­vo­cas­se a re­du­ção da par­ti­ci­pa­ção do tra­ba­lho nos bens e ser­vi­ços pro­du­zi­dos, pon­do em pe­ri­go até o pró­prio re­gi­me de­mo­crá­ti­co.

 

(Del­fim Net­to. For­ma­do pe­la USP, é pro­fes­sor de Eco­no­mia, foi mi­nis­tro e de­pu­ta­do fe­de­ral)

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias