Opinião

O fim da comunidade

Redação DM

Publicado em 3 de dezembro de 2015 às 23:09 | Atualizado há 10 anos

O eminente sociólogo alemão, Ferdinando Tönnies, apoiado em ideias de Schopenhauer, Hegel e Marx, fez um profundo estudo a respeito de comunidade e sociedade. Sua reflexão nos traz elementos esclarecedores e úteis para pensar sobre os caminhos que tomaram e tomam a organização social humana. Para ele, o sentido de comunidade é pautado em relações pessoais, em forças afetivas regidas pelos costumes, pela troca e interação em grupo. Esses grupos que garantem o sentido de comunidade são a família, a aldeia e as pequenas comunidades urbanas. Para Tönnies, a sociedade, como a conhecemos hoje, se funda na transição, na passagem dessas organizações humanas tradicionais, de pequeno porte, para formatos em grande escala como as metrópoles, o Estado ou a nação. Nesses grandes aglomerados, ao contrário das comunidades, as relações se tornam impessoais, os interesses comuns viram interesses particulares e as regras procuram seguir o direito e a opinião pública, cujo caráter público, a meu ver, pode certamente ser questionado.

A transição da comunidade para a sociedade edifica o caráter burguês, faz nascer os indivíduos dos grandes centros urbanos, sem raízes, sem vínculos afetivos, donos de uma aparente autossuficiência. Mais solitários, egoístas e insignificantemente solidários. Esses sujeitos da sociedade são diferentes daqueles da comunidade, que se socorrem, que mutuamente se protegem e garantem o equilíbrio da vida comunitária pautada na união. Eles são conectados a tudo, desde que tenham um cartão de crédito ou uma conta bancária com saldo. Na solidão, vivem a ilusão de que podem tudo e se sacrificam como mônadas selvagens espicaçando as outras a fim de sustentar essa ilusão. Como aponta Tönnies, “se na comunidade os homens permanecem unidos apesar de todas as separações, na sociedade permaneceriam separados não obstante todas as uniões”. Isso tudo, imagino, num jogo de poder violentamente desigual e astutamente combinado.

O livro “Comunidade e Sociedade”, de Ferdinando Tönnies, deveria ser leitura obrigatória àqueles sujeitos interioranos bem-intencionados, que passaram a vida nos grandes centros urbanos, com suas supostas facilidades, e retornaram para suas cidadezinhas de origem onde ainda predomina o velho espírito de comunidade. Muitos voltam cheios de romantismo e de inspiração bucólica, mas em poucos meses se deixam tomar pela neurose de mônada humana das grandes metrópoles e se põem, exasperados, a vomitar mal-estar e a querer sujeitar a comunidade a sua neurose burguesa. Em lugar de se reumanizarem, de se reencontrarem nos laços afetivos, de troca, de fazer coletivo para todos, da vida simples, temperante e suficiente do interior, se põem a lutar como loucos para transformar a comunidade em grande centro urbano, movidos pelo engano de poder ao qual se submeteram a vida toda na solidão anônima das metrópoles.

A esse tipo de neurótico burguês não satisfaz ir à casa de um parente levar umas bananas e goiabas do quintal e trazer, em agradecimento, umas laranjas ou umbus colhidos na roça. Ou promover um almoço para amigos e familiares e ser inúmeras vezes convidado para almoços de parentes e amigos. Ele precisa de uma pizzaria delivery, de um restaurante na esquina de casa ao qual irracionalmente vai de carro. Não basta uma bicicleta para passear nas ruas simples e de pouca extensão, ele necessita de uma Pajero ou Hilux para atormentar o sossego e abafar as conversas de calçada. O ideal é destruir o senso de solidariedade, os laços afetivos e o apreço à fraternidade que sustentam o espírito coletivo humano, ainda vivo nessas cidadezinhas de interior. E, a partir disso, instituir a lei do dinheiro, do consumo além da necessidade, mediado tão somente pelo valor monetário. O dinheiro, as transações e a vida que ele possibilita devem ocupar o lugar da humanidade, do afeto, da troca, do que é gratuito e agregador. O ideal é apartar todos, transformá-los em mônadas imbecis, escravas do dinheiro e reféns das engrenagens estúpidas que o capital cria para garantir sua circulação e acúmulo.

Quando essas pessoas, adoecidas pela vida selvagem das metrópoles, regressam a suas comunidades, acabam, até mesmo sem se dar conta, por promover o que, por fim, vai gerar os piores resíduos da lógica do capital. Expansão urbana cega e desnecessária, o aumento da pobreza, da taxa de criminalidade, da violência e do uso de drogas. Os primeiros sinais de que a sanha obtusa dessa gente está se impondo à comunidade é o surgimento da expansão urbana e comercial. O crescimento desordenado, movido por especulação fundiária e empresarial, promove a destruição do senso de comunidade. Favorece à criação de bolsões de pobreza e de degradação humana bem maiores e mais nocivos à comunidade, gerando a mendicância, os assaltos a residências, o tráfico de drogas, fazendo aparecer na paisagem urbana as cercas elétricas fechando casas de famílias como se fossem presídios. A partir daí o vizinho, o parente, o amigo, passam de bem-vindos a suspeitos. A grande vitória do capital está nisto: em isolar as pessoas, destruir seus laços afetivos, desumanizá-las e sugá-las até o fim. Depois de mortos, como já não existe o sentido de comunidade, pode-se ver lá no velório do sujeito o banner do seguro funerário e as carpideiras pagas para chorar sua morte e acompanhá-lo ao cemitério, tudo previamente pago.

Quem anda quebrando cabeça com os problemas sociais de cidade grande que começam a aparecer na comunidade em que vive deveria buscar a reflexão de Tönnies, como lupa para identificar o grau de degradação a que a lógica do capital está submetendo sua comunidade. Quanto mais cedo se previne a destruição do senso de comunidade pelo capital, menos tempo, energia e vida boa se tem que gastar para lidar com os efeitos desastrosos que ele produz.

 

(Alan Oliveira Machado, professor do Curso de Letras da UEG, mestre em Estudo de Linguagens e doutorando em EducaçSão pela FE-UFG)

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