O foro privilegiado é uma fábrica de prescrições que perpetuar a impunidade
Diário da Manhã
Publicado em 4 de novembro de 2016 às 00:42 | Atualizado há 8 anosEstes dias, li em algum lugar um interessante artigo do desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tratava da questão do foro privilegiado, que, com esta confusão que se estabeleceu no cenário político, qualquer leigo tem noção. E sua matéria levou-me a refletir sobre este assunto, que está sendo debatido em todo o Brasil..
Mas para colocar o leitor mais ou menos a par desse abominável instituto, parido pela Constituição de 1988, é mister fazer algumas considerações.
O foro privilegiado, não obstante muitas vezes tolerado em caráter excepcional para o processo e julgamento de determinadas autoridades públicas na esfera penal, sempre foi objeto de forte repulsa, desde a primeira Constituição. Mesmo no período imperial, em que vigorava o princípio monárquico, a Constituição de 1824 já dispunha, em seu art. 179, inciso XVII, que não haveria foro privilegiado “nem comissões especiais nas causas cíveis, ou crimes”. Após a instauração da República, a primeira Constituição republicana, de 1891, no art. 72, § 23, prescrevia, taxativamente: “À exceção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juízos especiais, não haverá foro privilegiado”.
Por sua vez, a efêmera Constituição de 1934 (que vigeu apenas três anos) inovou, agregando à cláusula proibitiva, no art. 113, nº 25, a vedação de tribunais de exceção, prescrevendo que não haveria foro privilegiado nem tribunais de exceção, embora admitisse juízos especiais “em função da natureza das causas”. Veio depois a “Constituição Polaca”, de 1937, que implantou o Estado Novo, mas não abonou a figura do foro privilegiado.
Vê-se, assim, que as primeiras constituições brasileiras excepcionavam da cláusula vedatória de foro privilegiado as causas que, por sua natureza, pertenciam a juízos especiais. A partir da Constituição de 1946, tem prevalecido o rigor técnico, mediante proibição vazada em fórmula concisa, sem a aludida ressalva, que passou a se considerar implícita, preceituando o art. 141, § 26, daquela Constituição que “não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção”.
O art. 153, § 15, da Constituição de 1967, inalterado pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969, em pleno regime de exceção, manteve a proibição, nos seguintes termos: “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção”.
Mas o brasileiro sempre acha uma forma de tapear o povo e tirar vantagens em tudo. E a visão de Rui Barbosa deixou, há mais de um século, a grande verdade, que se perpetua até este momento: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. Nada mais correto nestes dias de hoje.
Exatamente para mascarar as falcatruas que hoje se tornaram banais, o constituinte de 1988 criou a figura do “foro especial por prerrogativa de função” tendo sido ela mais generosa em conceder foro privilegiado a autoridades públicas, registrando nada menos que dezenove hipóteses do privilégio em seu texto, expressos nos arts. 29, inciso X; 102, inciso I, alíneas “b” e “c”; 105, inciso I, alínea “a”; e 108, inciso I, alínea a.
Ora, o art. 5º da vigente Constituição dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e o próprio inciso XXXVII desse artigo diz que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, o que vem a contrapor-se aos dispositivos que criam as dezenove hipóteses em que certos brasileiros deixam de ser julgados pelo juiz singular para o serem por tribunais, que não possuem estrutura para fazer uma instrução processual (prefeitos, vereadores, deputados, senadores, magistrados, conselheiros e outras autoridades não se submetem ao julgamento pelos juízos que possuem todos os mecanismos para a instrução processual). Os únicos juízos e tribunais de exceção previstos são as Auditorias e Tribunais Militares (arts. 122 seguintes da Constituição), criados para julgar crimes militares, cuja tipicidade não se enquadra no Código Penal.
Cada país adota o sistema que lhe parece mais conveniente. Na Europa, a Constituição de 1974 de Portugal não prevê ação penal originária nos Tribunais, porém estabelece que os Deputados só podem ser processados com autorização da Assembleia (art. 160º, inc. 3). Na Espanha, a Constituição de 1978, ao tratar do Poder Judicial (arts. 117º a 127º), não prevê a existência de foro privilegiado. Na Constituição Suíça de 2006, da Holanda de 1983, não preveem a existência de foro privilegiado. A Constituição da Itália, de 1947, prevê caber à Corte Constitucional o poder de julgar o presidente da República pelos crimes praticados (art. 135). Nos Estados Unidos, nem o presidente tem foro privilegiado – o ex-presidente Bill Clinton foi processado, naquele caso com a Mônica Lewinski, na primeira instância – e na Europa ele é apenas para pouquíssimas pessoas.
Na África, a Constituição de 1980 da República de Cabo Verde não faz referência ao assunto. A Constituição da República Popular de Moçambique, ao tratar da organização judiciária, não prevê qualquer tipo de foro privilegiado (arts. 69 a 75), resguardando, apenas, os deputados da Assembleia Popular, que não podem ser presos, salvo em flagrante delito, nem processados sem autorização deste órgão ou da sua Comissão Permanente (art. 49).
Na América do Sul, a Constituição Argentina de 1994 adota-o, porém de forma restrita, limitando-se a dar à Câmara dos Deputados o direito de acusar perante o Senado, que exerce o poder de julgar, o presidente, o vice-presidente, o chefe de gabinete de ministros, os ministros e os membros da Corte Suprema, por mau desempenho nas suas funções ou por crimes de responsabilidade e comuns (arts. 53 e 59). Na Colômbia, a Constituição Política de 1991 adota o regime de foro privilegiado para o julgamento do presidente da República, membros do Congresso, procurador-geral da Nação, ministros de Estado, defensor do povo, agentes do Ministério Público junto à Corte e ao Conselho de Estado, diretores de departamentos administrativos, controlador-geral da República, embaixadores e chefes de missão diplomática, governadores, magistrados de tribunais, generais e almirantes da Força Pública (art. 235, 2 a 4). No Equador, a Constituição de 1998 é omissa a respeito, inclusive quando trata do Poder Judicial (arts. 191 a 208).
É uma prática que já deveria estar abolida no Brasil, a bem da lógica e da moralidade.
A nossa Constituição de 88, que estabeleceu o foro privilegiado para parlamentares e outras autoridades, tem alguns exageros como uma resposta ao regime militar e resultou nessa proteção exagerada. Acho difícil que esses refinados espertalhões acabem com seus próprios privilégios.
No Brasil, além do presidente e do vice-presidente da República, existem 27 governadores e 27 vice-governadores, 81 senadores, 513 deputados federais, 1.059 estaduais, 5.561 prefeitos 5.561 vice-prefeitos, milhares de deputados estaduais e 60.320 vereadores, sem se falar nos conselheiros do Tribunal de Contas da União, dos Estados e dos Municípios e nos magistrados e ministros de Estado, que poderão estar na fila de espera do execrável foro privilegiado. Enquanto isso, o cidadão comum, que paga impostos para sustentar parasitas, é tratado a ferro e fogo, sem privilégio algum.
Existe em tramitação no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 358), que dorme em berço esplêndido desde 2005, sob a relatoria do.senador Roberto Rocha, do PSB do Maranhão, mas ele acaba de pedir licença para cuidar da saúde, depois de desfigurá-la com a sugestões para julgar políticos, substituindo um foro privilegiado por vários. Roberto Rocha licenciou-se para recuperar-se de uma cirurgia de redução do estômago. O fato de o assunto ter sido jogado para as calendas gregas só reforça a certeza de que o fim do foro privilegiado é a única cirurgia capaz de reduzir o apetite dos políticos pela impunidade.
Veja-se um só exemplo: Eduardo Azeredo, ex-governador e então deputado federal por Minas Gerais, que detinha foro privilegiado, foi denunciado ao STF em 2007, por crimes cometidos em 1998 (onze anos antes). Renunciou ao mandato, e o Supremo, em 2014, decidiu encaminhar seu processo ao juízo singular. E em 16/12/2015, foi condenado pela juíza da 9ª Vara Criminal de Belo Horizonte, a 22 anos de prisão, menos de dois anos depois. Fazendo as contas: da data dos crimes à decisão de encaminhar o processo para o primeiro grau transcorreram dezessete anos. E a decisão condenatória saiu vinte e um meses depois. Isto, contando-se os protocolos de remessa, recebimento da denúncia e toda a instrução processual (oitiva de testemunhas, perícias, alegações etc.). Esses políticos lá querem acabar com a mamata?
Somente uma pressão popular muito grande faria com que votassem a favor, pois, em regra, os congressistas só votam às pressas reajuste de seus subsídios e outras matérias de seu interesse exclusivo. Enquete realizada no fim de setembro último pelo jornal “Correio Braziliense” apontou que 78% dos pesquisados desejam o fim da regalia.
O fim do foro privilegiado é tão urgente quanto a decisão de prender condenados em segunda instância, felizmente ratificada pelo STF. Como se vê, o tratamento dado à matéria é absolutamente diferente nos diversos países. É possível, ainda, que parte dos que foram mencionados regulem o assunto através de leis ordinárias. É possível, ainda, afirmar que em nenhum país do mundo o foro privilegiado é estendido a tantos atores como neste circo que se chama Brasil, para enganar os palhaços, que somos nós.
De fato, este privilégio de foro é uma fábrica de prescrições e um caldeirão de impunidade, mas não podemos debitar aos ministros os passos de tartaruga que movimentam os processos, face à elevada quantidade que ali tramita; mas tem havido progresso jurisprudencial, quando o STF deu um passo gigantesco ao definir que a confirmação de uma decisão na instância colegiada implica na imediata prisão do condenado.
Mas o patente desejo de todos os políticos é ficarem no STF, e jamais numa vara criminal, como a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba. Para se ter uma ideia, no mesmo período, enquanto Moro condenou mais de 100 pessoas, a mais de mil anos de prisão, o STF, até agora, só conseguiu receber uma denúncia (contra Eduardo Cunha). Dezenas de outras denúncias continuam pendentes (a de Renan está na fila de espera há três anos). Estabeleceu-se um círculo vicioso: os políticos indicam os seus próprios julgadores, e estes, por dever de gratidão, por mais sérios que aparentem, jamais irão condenar seus padrinhos. Isto, se conseguirem instruir os processos (o “mensalão” foi uma honrosíssima exceção).
O ministro Roberto Barroso, do STF, que é, junto com o ministro Marco Aurélio, contra o privilégio de foro, é defensor da ideia de se criar varas especiais para julgar políticos sujeitos a foro privilegiado; o STF hoje está com mais de 300 investigações em andamento e mais de 100 processos contra pessoas com foro especial, o que levará muitos anos, com prescrições inevitáveis, por falta de aparelhamento adequado para instrução processual; e a ideia da criação das varas especiais sugeridas por ele faria todo o trabalho de primeira instância, assegurando-se recurso direto para o STJ ou o STF (conforme a autoridade processada). Os tribunais foram criados não para instruir processos, mas para resolver litígios com eficácia de coisa julgada. Só nosso constituinte de 88 não quis ver isso. E o caso de Eduardo Azeredo é emblemático.
Em que pese ser uma ideia aparentemente singela, ao que tudo indica, a solução idealizada pelo ministro Barroso é de muita eficácia. É na singeleza das boas ideias que estão as grandes soluções. Seria o “ovo de Colombo” da Justiça neste particular.
Se formos esperar que o Congresso acabe com esse intruso e imoral dispositivo constitucional e leve os corruptos a serem julgados por um juiz de primeira instância, é certo que jamais veremos um político na cadeia, e a única exceção foi o “mensalão”, que, ainda assim, consumiu um ano e meio e nada menos que sessenta e seis sessões para chegar a um veredicto.
Se não houvessem criado esta estapafúrdia figura na nossa Magna Carta de 1988, e os políticos fossem julgados por um juiz singular desde aquela época, já estaríamos com nosso Parlamento depurado, e nós, livres de tanto bandido.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])