O homem que amava os cachorros
Redação
Publicado em 10 de abril de 2015 às 02:35 | Atualizado há 10 anosFernando Safatle ,Especial para Opinião Pública
Acabei de ler o livro do cubano Leonardo Padura: O homem que amava os cachorros. Não deixa de ser um título estranho para um livro que trata de um assunto relevante para a história contemporânea: o assassinato de Trotsky no México. Mas diante de sua narrativa se descobre que o título se remete a um detalhe em comum entre o assassino espanhol, Ramon Mercader, a mando de Stalin e o assassinado Trotsky: ambos amavam os cachorros, especialmente, os booze russos. De resto, obviamente, nada mais os identifica.
O livro é um romance da história, ou mesmo, uma história romanceada dos dois personagens, Trotsky e Ramon. Como obra literária é de primeira linha, muito bem escrita e, como história irretocável revelando aspectos históricos até então desconhecidos. Por exemplo, muito se escreveu sobre Trotsky e basicamente nada sobre o seu carrasco, Ramon Mercader. Padura consegue não só traçar o perfil de Ramon, um integrante da Guerra Civil Espanhola, como também descreve com minúcias e detalhes o seu recrutamento pela KGB e a preparação e adestramento que foi submetido para perpetrar o crime contra Trotsky. Durante mais de dois anos a KGB, sob o comando de Kartov, alto dirigente do serviço de espionagem soviético, submeteu Ramon às mais duras provas e desafios físicos e ideológicos. Depois de suficientemente adestrado passou a incorporar a figura de um belga, que vivia de rendas da família, disfarce assumido, até nos seus depoimentos a polícia mexicana quando capturado depois do crime cometido contra Trotsky. A KGB para introduzi-lo na fortaleza de Coyacan forjou um encontro amoroso com uma trotskista americana, Silvia, que tinha acesso ao circulo restrito de Trotsky. A trama diabólica conduzida pela KGB sob a orientação de Stalin, conforme relato de Padura, parece um filme de espionagem muito bem urdido e milimetricamente planejado como naqueles filmes de James Bond. Sua fonte, segundo o livro, foi absorvida pelos relatos pessoais do próprio Ramon Mercader que, depois de 20 anos de cadeia, morou alguns anos em Cuba.
Sobre Trotsky Padura esclarece que desconhecia quase por completo a sua história, um verdadeiro tabu em Cuba. Para se enfronhar e conhecer sua história tomou emprestado de um velho militante cubano a trilogia do marxista polonês Isaac Deutscher: O Profeta Armado; O Profeta Desarmado e O Profeta Banido. Aliás, Deutscher publicou essa biografia de Trotsky em 1950, na Inglaterra e, para mim é a melhor já escrita sobre Trotsky. Ele era do Partido Comunista Polonês e viveu pessoalmente os episódios daquela época. Padura se baseia sua história de Trotsky fundamentalmente em Deutscher. Ele trata da trajetória de Trotsky a partir da sua deportação para Alma Ata no interior da Rússia, em kazaquistão, passando por Prinkipo na Turquia, seu exílio pela França, Noruega até sua colhida pelo presidente Lazaro Cárdenas, a convite do pintor Diego Rivera, no México.
Além da narrativa muito bem escrita, o que ressalta no livro de Padura é o seu posicionamento político critico acerca da prática stalinista durante a Guerra Civil Espanhola. Padura não esconde o fato de Stalin não estar muito interessado, a certa altura, na vitória das forças republicanas na Espanha. Para ele, antes de tudo, Stalin colocava os reais interesses da própria União Soviética em primeiro lugar. Com a ascensão do nazismo não lhe interessava naquele momento alterar o equilíbrio de forcas na Europa e cutucar com vara curta o projeto ambicioso de Hitler. Como de resto também analisa os graves equívocos de Stalin na condução da política internacional, especialmente na Alemanha com a divisão das forças de esquerda criando as condições para a ascensão de Hitler.
Padura é crítico contumaz ao totalitarismo e ao terror stalinista que vigorou não só na União Soviética, como também a ausência de democracia que contaminou os Partidos Comunistas de todo o mundo, sob o tacão do centralismo democrático. Diante desse aspecto não deixa de criticar o próprio regime cubano e a sua intolerância discriminando as minorias (seu irmão morreu vítima de discriminação expulso da universidade por ser gay). Padura sofre da doença do desencanto que tomou conta de sua geração que acreditava na construção de um novo mundo. No fim de suas vidas, como relata Padura, até mesmo Ramon e Kartov foram alvos dessa desilusão, pois também ao seu modo entregaram suas vidas a uma causa segundo eles perdida. Aliás, a Utopia Pervertida parece ser o mal de nossas gerações desencantadas de tantos infortúnios que uma prática burocrática e antidemocrática vem provocando nos partidos de esquerda até padecerem e morrerem de inanição por degeneração. Enfim, Padura, ao contrário de muitos desiludidos, faz uma crítica pela esquerda (não pela direita) aos desvios totalitários da esquerda. Por isso, vale a pena lê-lo.
(Fernando Safatle – economista [email protected])