Brasil

O homem que mudou uma geração através do futebol

Redação DM

Publicado em 3 de dezembro de 2015 às 22:50 | Atualizado há 10 anos

Quando chegou o primeiro juiz de Direito a São José do Duro, foi uma festa. Nós, do grupo escolar, perfilamo-nos ao longo da rua principal para recepcioná-lo, pois era uma preciosa aquisição para a cidade, que assumia foros de importância, passando para trás outras das vizinhanças.

Chegava o dr. Joaquim Ribeiro Magalhães Filho, goiano de Arraias, que escolhera aquela cidadezinha para tomar como sua. Viera de Posse, onde exercera a magistratura e em Dianópolis permaneceu até aposentar-se, fincando o umbigo e criando os filhos.  E, abrindo um parênteses, coincidentemente, após mais de ano de jejum de justiça com a comarca vaga, chegou ali dr. Rui Epifânio Pereira, que, talqualmente o dr. Magalhães, também viera de Posse, e cá conosco estávamos torcendo que pegasse a mesma trilha do primeiro, ali permanecendo até aposentar-se, no mister de distribuir a Justiça e moralizar a cidade, no que foi indo muito bem, e pelo acerto de suas sentenças, só esperávamos que também tomasse a cidade como sua para também marcar história. Mas acabou foi pedindo promoção pra Filadélfia.

Mas, voltemos ao dr. Magalhães, que, logo de chegada, fez amizades, e cativou a cidade, mormente nós, a meninada, que descobrimos ter sido ele excelente jogador de futebol, tendo até defendido as cores da seleção goiana. Não demorou muito, ele já organizava um timezinho de estudantes e treinava-o todas as tardes no campo velho ao lado do pé de tamarindo nos fundos de um goiabal.  E o negócio foi avante, pois a meninada era entusiasmada. E ele se tornou uma espécie de tutor de todos nós, aconselhando-nos, encaminhando todo mundo para o gosto pelo esporte, pela leitura e trazendo debaixo da asa todos aqueles, que, como filhos, se apinhavam na sua casa, aprendendo boas maneiras, as mesmas que ele ensinava aos filhos Édio, Eneide, Eudes e Élida.

Cidadezinha escassa de gente, não havia meio de se formar a não ser dois times: de um lado, o time do ginásio, orientado pelo dr. Magalhães, e do outro, o da cidade, dirigido pelo meu primo Zito. O do ginásio era praticamente formado de meninotes: Tezinho, Jeovah, Baúcho, Ney, Zé Afonso, Juarez Bruaca, Diógenes, Milton de Culeu e outros franzinos rapazolas. O da cidade era de homens feitos: Zuza Morredeira, Hercy, Nezinho Pantame, Dário de Brasilina, Tico, de Maria Viúva, Leônidas Peidorreira, Generino, Petinha e outros respeitáveis pais de família, mais afeitos à colher de pedreiro e ao careco de massa de cal e cimento do que propriamente à bola. Mas enganavam muito bem.  Havia gente que levava jeito – como Tico, de Maria Viúva – que, se fosse hoje, estaria tranquilamente envergando a camiseta de um time grande num estádio qualquer, sem fazer vergonha. Esse terrível Tico parece que nascera com o futebol na massa do sangue, pois era tão bom no gol como na ponta-esquerda, passando por todas as posições.

A fragilidade da meninada do fanático flamenguista dr. Magalhães não o animava a colocá-la frente a frente com os taludos atletas da cidade: onde é que uns frangotes daqueles iam dar vencimento ao muque daqueles pedreiros e serventes de obra, sem se falar noutros fornidos braçais?  Home quá!

Dr. Magalhães ia treinando sua turminha para um dia – quando sentisse que ela estivesse preparada pelo menos psicologicamente – enfrentar a turma de Zito. Mas foi levando com paciência, pois a meninada estava numa cegueira danada para se exibir e queria porque queria medir forças com os experimentados varapaus citadinos.

Foi nada, não. Vão assuntando: um dia, dr. Magalhães viajou para Arraias, e na sua ausência a turminha deu uma de desobediência e ajuntou-se num fim de semana, desafiou a sisuda equipe da cidade, que estava seca pra responder no campo às provocações da gurizada.

No dia do jogo clandestino, uma verdadeira multidão disputou as margens do campinho. E a gurizada, toda descalça, deu um “banho” nos velhos, fazendo por sua própria conta um batismo de fogo sempre adiado pelo dr. Magalhães, que só não deu uma sapituca porque seus pupilos haviam aplicado homérica e histórica goleada, que serviu para marcar os futuros prélios como disputadíssimos clássicos, sempre com gosto de revanche.

Mas a experiência da turminha serviu para afamar o time, que saiu “catando” tudo quanto era seleção: de Taguatinga, Natividade, Porto Nacional e outras cidades. E o entusiasmo embriagou dr. Magalhães de tal forma, que nosso timinho, resolveu ir até Barreiras, na Bahia, cutucar com vara curta o temível Coríntias, que jogava pau a pau com times até da capital.

Partiu a caravana para Barreiras.  Dias depois, a turma voltou: tinha levado uma respeitável goleada de 6 a 1, que deixou dr. Magalhães apaixonado de desgosto, sem fazer a barba por seis meses, inconformado com a derrota.

Hoje, mais de 50 anos depois, depois permanece intacta a fama de dr. Magalhães, como verdadeiro líder dos meninotes de minha época (hoje, todos pais de família), que guardam numa gaveta especial do escaninho da memória aqueles joguinhos ao pé do tamarindeiro.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

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