Opinião

O jatobazeiro da Chácara Baumann

Redação DM

Publicado em 5 de janeiro de 2016 às 23:37 | Atualizado há 9 anos

Uma árvore é um universo e possui significado e plenitude num determinado lugar. Marca indelével da vida, constitui beleza, recordação, vivência e conhecimento; marcando, com sua presença, várias fases de um tempo, nas lembranças que ficam, com inexcedível ternura, gravadas no âmago do coração.

No reino vegetal, por si só, carregado de densa beleza, uma árvore é emblemática. Rica de sentido e força; traz, do profundo da terra, o mistério dos vários tons de verde, das cascas, das raízes, das folhas, das flores, dos frutos. É uma perfeita alquimia, na seiva da vida, a reconstituir a nós, a presença definitiva de Deus em todas as criaturas.

Eu amo as árvores, pois elas sabem do seu destino!

Quando uma árvore desaparece do cenário de um mundo, ficam feridas as diversas instâncias que se valeram, por décadas, da sua presença. Há um hiato e uma profunda e vazia abertura, onde, antes, a sombra imperava, com suas brisas suaves e suas molduras gravadas no universo reinante.

Uma árvore ocupa um espaço definitivo e sua presença cheia de luz, espalha centelhas divinas de paz e de harmonia.

Uma árvore está presente na vida de muitas pessoas, até de uma comunidade, no registro de uma história, como o “pau de choro”, que existia no Povoado de Areias, na Cidade de Goiás, que era ponto de despedida das pessoas que partiam da velha capital, às vezes para sempre, naquelas ditosas eras, motivo de crônicas de Octo Marques, Victor de Carvalho Ramos, Pedro Cordolino Ferreira de Azevedo, Pedro Gomes de Oliveira e Aymoré de Vellasco e poemas do dr. Eduardo Henrique de Souza Filho e Emília Perillo Argenta.

À sombra daquela árvore tanto sentimento se perpetuou, dores e mágoas, pressentimentos, que o tempo tentou sepultar!

Também as tamareiras, ali plantadas naquele bucólico recanto, pelo bispo Dom Eduardo Duarte da Silva, ainda no século XIX, foram tema de crônica de Célia Coutinho Seixo de Britto e Octo Marques; o tamboril, da porta do Cemitério de São Miguel da cidade de Goiás, tema de crônicas de Nice Monteiro Daher, Nair Perillo, Antonio Juruena Di Guimarães e poemas de Josefina Pinheiro de Lemos Mendes e Clarisse Fleury Curado.

Em outras plagas, a notoriedade vegetal do garboso jatobazeiro dos tempos pioneiros de Goiânia, próximo aos rios Meia Ponte e João Leite, impiedosamente calcinado em suas raízes, cantado docemente em crônica por Altamiro de Moura Pacheco; a árvore moreira, da Rua 24, no Centro, testemunha histórica dos primeiros dias de Goiânia, cantada em prosa e verso por Amália Hermano e José Mendonça Teles, os ipês do fundo da antiga Santa Casa de Misericórdia de Goiânia, decantados em verso por Rosarita Fleury e Amália Hermano, destruídos no lugar onde, por incúria, foi ponto inicial da tragédia com o Césio 137, de funestas consequências.

Também o mogno da Rua 20 foi cantado em crônica por José Mendonça Teles; assim como os buritis do bosque, cantados por Bariani Ortêncio, Belkiss Spencière, Carmo Bernardes e Bernardo Élis e tantos outros amantes desse chão.

Os flamboyants floridos dos primeiros tempos da Avenida Tocantins, mereceram belos textos de Belkiss Spencière, José Mendonça Teles e Bariani Ortêncio em tempos alternados. Muitas espécies vegetais goianas foram descritas nos lindos versos de Saciologia goiana, de Gilberto Mendonça Teles.

O escritor que mais cantou nossas árvores com textos de lirismo profundo foi o saudoso Carmo Bernardes, um amante das matas, cerrados, capões e cerradinhos do tempo.

Tantas são, assim, as velhas árvores, marcas de nosso Cerrado tão destruído e atacado em nome do progresso. Em cada canto, nelas, se chora uma saudade. Árvores que desapareceram para o nunca mais, marcando um ciclo da vida imperecível.

Mesmo em títulos de livros, as árvores ganham destaque em Às sombras do jatobá, de Umbelina Frota. À sombra do ipê, de Juarez Moreira Filho, Buriti do sereno, de Armênia Pinto de Souza; na terra do ipê amarelo, de Francisco Braga Sobrinho; Pequizeiros em flor, de Jeovah de Paula Rezende; Caraíbas flor e sangue, de Dionísio Machado; Cacho de tucum, de Humberto Crispim Borges; Vão dos angicos, de Bariani Ortêncio, para lembrar alguns, dentre os tantos existentes.

Assim, também, as palmeiras do solar da família Bulhões, no Largo do Chafariz, cantadas em prosa por Edla Pacheco Saad e em versos por Eudes Pacheco, Eduardo Henrique de Souza Filho, Emília Perillo Argenta e Luiza de Camargo Ferreira. Na literatura brasileira, também, há diversos autores que evidenciaram as árvores em suas narrativas, como em poemas de Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, “o buriti perdido”, de Afonso Arinos e o mais emblemático de todos; o livro mais lido e traduzido no Brasil, que foi “O meu pé de laranja lima”, escrito em 1967 por José Mauro de Vasconcelos (1920-1984).

Um simples pezinho de laranja correu o mundo no seu imenso significado!

Canto, aqui, o jatobazeiro secular da Chácara Baumann, na cidade de Goiás, morto agora, pela fúria das últimas ventanias de dezembro. Ele viu a passagem de dois séculos, e, altaneiro e altivo, compôs o cenário de Vila Boa de Goyaz por muito mais de 100 anos. Era um símbolo e uma referência para a chácara e para a história da antiga capital de Goiás, num dos recantos mais poéticos e bucólicos da velha cidade do Anhanguera.

Nascido ou plantado num tempo imemorial da antiga Vila Boa de Goyaz dos oitocentos, viu a luz do mundo, num dia muito distante. Sentiu as aromas e os ares de um tempo já perdido no esquecimento.

Vila Boa era aconchegada, naquele tempo, na placenta verde das matas, e, mesmo sendo capital, era uma acanhada cidade com sua gente, seus costumes, sua natureza exuberante, seus morros e outeiros derramados na geografia das incertezas, em ruas forradas de pedras, serpenteando em becos e vielas, com cajazeiras e cajueiros, quais vias romanas.

O pequeno jatobazeiro pode sentir as mudanças e as transformações passadas no burgo anhanguerino, desde os tempos do fim da escravidão, do começo da República; os primeiros dias e as incertezas do novo regime. Por ele passavam os meninos com suas varas de anzol ao ombro para as pescarias no Rio Vermelho ou para catarem os frutos do cerrado, derramados nos morros vilaboenses.

Via, ele, pouco abaixo, o velho matadouro, a parte mais pobre da cidade, os becos que se abriam na Rua da Estrada e se finalizavam no cerradinho ou nos brejos. Via a Chácara de Amâncio Seixo de Britto, o rego d’água e os primeiros casarões de Vila Boa, abrindo-se no cais do rio. Assim viu ele, a virada do século, as terras de João Jácomo de Baumann irem à hasta pública, o novo dono e os projetos de uma casa ali por perto, no cimo do outeiro. Viu a pequena usina sendo construída logo depois dele, para os primeiros progressos de Vila Boa.

Viu, ele, temeroso, a quebra da pedreira com dinamite, viu subir a nova casa de tijolos, sem esteios, erguer pouco a pouco, o telhado, as janelas, as portas, o terraço construído a seus pés, a cerca de madeira, os canteiros do jardim em forma de lua e estrelas, o caramanchão do jasmim, as roseiras, uma vida que começava. Sentiu-se importante por ser parte integrante da casa, servindo sombra, frutos, e por ser admirado por todos por sua altivez e tamanho.

Viu, num dia distante de 1903, a casa ficar pronta e habitada. Viu os festejos familiares, os filhos pequenos ocupando o terreno, correndo pelo quintal e pelo pasto, numa vida de liberdade. Era o casal ilustre, culto e admirável, dr. Sebastião Fleury Curado, advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e Augusta de Faro Fleury Curado, escritora e pianista, que fizera seus estudos em Paris e escrevera um livro em São Paulo, já mãe de alguns filhos; com suas flores, seus livros e seu piano, cujas notas musicais, em custosas peças, chegavam pelo vazio das janelas até o jatobazeiro orgulhoso e imponente, desfraldando às suaves brisas do alto do outeiro.

Sebastião e Augusta haviam se casado no Rio de Janeiro em 1893. Vieram para Goiás em 1896 numa custosa viagem de meses, narrada num diário por Augusta de Faro, publicado quase 100 anos depois.

Na Capital Federal, agitada pelo pós-República, nasceram seus dois primeiros filhos, Maria Paula (1894-1982) e André (1895-1977). Quando chegaram a Goiás residiram na Rua do Carmo, onde nasceram os filhos Mariana, Clarisse, Hermínia e João; este último, falecido com alguns meses de vida.

No alto da Chácara Baumann, enfeitada pela jatobazeiro, o primeiro a nascer foi Sebastião Filho (Dinho) no mesmo ano, seguido de Augusto da Paixão, em 1908, e Josefina, em 1912. Viu o velho jatozabeiro, a família seguir para o Rio de Janeiro por certo tempo, onde dr. Sebastião cumpriria o mandato de deputado federal a que fora eleito em 1912.

E, assim, a velha árvore acompanhou o desenrolar da vida familiar. Festas de São João, novenas e tríduos natalinos, os nascimentos dos filhos, as alegrias e decepções. À sua sombra, os saraus e tertúlias, discussões políticas, quando, ali, em 1909, foram traçados os planos da “Revolução branca”, que derrubou o governo de Xavier de Almeida e instaurou o caiadismo; os entrechoques dos partidos, os textos e pesquisas de Sebastião, os poemas de Augusta de Faro, as primeiras crônicas de Maria Paula e Nita, publicadas no “O tico tico”, “Fon Fon” e “Jornal das Moças”, as leituras e os sonhos…

Nas narrativas de Maria Paula, constam que, em criança, sendo ela a mais velha, era responsável pelos irmãos mais novos quando os pais saiam, mesmo a noite e, às vezes se assustavam com o barulho do vento nos galhos do jatobazeiro, no balançar dos encaixes das janelas, e relembra os natais, os presentes, a família reunida no terraço, o primeiro gramofone vindo num aniversário de Augusta, quando a casa se encheu de música clássica no encantamento daquela hora agradável, logo pela manhã; assim como o pai tratando das criações do quintal e o café tomado na varanda do casarão, vendo, ao longe, a sombra azulada da Serra Dourada…

O jatobazeiro viu irromper os diferentes tempos históricos, mudanças de governo, imposições e leis humanas. Acompanhou o primeiro casamento, de Nita e Agnelo, em 1920, e a primeira debandada. Depois Maria Paula, em 1923, quando se casou com Albatênio Caiado; depois André, em 1926, que se casou com Maria Coelho. Depois, em memoráveis dias, à sombra do jatobazeiro, a reunião de todos, com filhos, na alegria da família aumentando.

Este foi o último casamento de filho assistido por Augusta de Faro, que faleceu na manhã de 11 de abril de 1929. Momentos bons e tristes, da debandada humana, em busca do destino, que cada um o teve, todos assistidos pelo jatobazeiro, como cúmplice de instantes, em que, à sua sombra, risos e festejos; assim como lágrimas e despedidas, algumas, para nunca mais.

Na casa triste, à sombra do jatobazeiro protetor ficaram as filhas solteiras, Clarisse, Hermínia, Josefina e o pai. Sebastião Júnior e Augusto estudavam fora. Logo após a morte da mãe, no ano seguinte se casava Sebastião Júnior com América de Barros, em São Paulo. Apenas o pai e as filhas na grande casa, protegida pelo jatobazeiro, que via o grande vazio deixado, e o destino humano, implacável, sendo cumprido. Não mais o riso aberto, os jantares, o piano mudo, as flores saudosas, apenas o jatobazeiro como sombra amparando as vidas ali plasmadas no tempo.

Assistiu o jatobazeiro as primeiras modificações do regime após 1930, os ideais de mudança da capital. Sentiu ele que a velha cidade sofreria rude golpe com a perda do poder administrativo. E assim se cumpriu. Muitos mudaram para Goiânia e a tristeza e o isolamento na velha casa solarenga ficaram ainda maiores.

Em 1937 não havia mais como continuar naquela casa pejada de lembranças, dificuldades e saudades. O jatobazeiro viu sair a todos e a casa ficar deserta, depois alugada, por outros seres que não os que ele amava. Viu partir Sebastião para a Casa da Rua Couto Magalhães no cais do Rio Vermelho, com as filhas solteiras e Augusto da Paixão, formado e a trabalhar em banca de advocacia com o pai.

Novos tempos e novas tristezas para o jatobazeiro, no alto do outeiro e olhar para o nada e o vazio de tudo. Em 1940, Augusto da Paixão desposou Ivany Craveiro e a “Velha casa” ficou apenas povoada por Sebastião e suas três filhas solteiras.

Em 1944 faleceu Sebastião Fleury, aos 80 anos de idade. Depois, as filhas solteiras na velha casa, a solidão, a consolidação de Goiânia. Assim, com os irmãos já em Goiânia e em outras cidades, mudaram para a nova capital de Goiás. Só em 1958, Josefina se casou com Alfredo Piquet, e, enviuvando-se em 1978, voltou para a companhia das irmãs solteiras.

O jatobazeiro não desertou. Guardião da casa antiga, na colina, sobreviveu aos impactos e dores do tempo. Sentiu florescer quando, na divisão dos bens, pelos elos do coração, viu em Augusto e Ivany a continuação da vida imperecível, na junção das chácaras “Sinhá Cupertino” e “Baumann”, formando elos do coração.

A bondade, generosidade, amor filial e histórico do casal Augusto da Paixão Fleury Curado e Ivany Craveiro Fleury Curado deram nova vida às moradas de seus antepassados. A casa floriu em sentidos, o jatobazeiro, alvissareiro, viu novamente seus amados elos, como se fosse da família, voltarem à casa, as festas, as reuniões, em dias de contemplação da beleza da continuidade pelos laços do coração. Viu partir Augusto e Ivany, numa simbiose tão linda como pouco há. Mas, sentiu em seus descendentes, a proteção e a admiração de seus antecessores.

Pouco a pouco todos desapareceram. Augusta de Faro em 1929; Sebastião Fleury em 1944; André em 1977; Maria Paula em 1982, Nita em 1986; Hermínia em 1988, Sebastião Júnior em 1989; Clarisse em 1993; Augusto em 2002 e Josefina em 2003. Os genros e noras também desapareceram como Albatênio, Agnelo, Maria, América, Alfredo, Ivany. Muitos dos netos já morreram como Clóvis, Marilda, Thales, Aymurê, Albatênio, Sebastião Herculano, Zilah, Ewerton, Piragibe, muitos bisnetos ainda jovens. Partiram muitos para a eterna morada, cumprindo os desígnios de Deus.

Como escrevera Nita Fleury, o jatobazeiro ficara, guardando em suas frondes, a história dos que ali viveram. E assim o foi. Ele também cumpriu o seu destino.

Guardião do tempo. Esse foi o papel do jatobazeiro da Chácara Baumann. Por mais de 100 anos aguentou, rijo, os embates do destino. Foi um símbolo, uma marca e sua morte foi como a mesma de uma pessoa muito querida, muito amada, presente na alma e na lembrança de todos que o conheceram deixou o seu legado.

Antropomorfizado, era mesmo uma pessoa, um velho amigo ou parente, uma criatura que se estimava e se alegrava os olhos e o coração, quando era visto, de longe, com seus imensos braços vegetais, abertos…

Posso fechar os olhos e vê-lo, altivo e verde no alto daquele outeiro. E o vejo pelo milagre da saudade, reconstituído dentro do meu coração. Vejo-o nas belas noites muito brancas do luar vilaboense, os raios trespassando seus galhos e fazendo desenhos bonitos no terraço. Vejo-o ao sol causticante da seca, em que, também, o sol, triunfante, rompia sua galharia e derramava luzes sobre a casa.

Vejo-o sob uma chuvinha mansa de dezembro, cujos pingos d’água se derramavam delicados de suas folhas. Vejo seus frutos, grandes, caídos no barranco, derramando-se para o pasto. Vejo-o seguro ao vento forte, no torcer dos galhos, numa grande barulheira, na sua luta contra a insipidez da vida. Foi um guerreiro. Mesmo doente, viveu mais de um século na alegria de seus galhos, como braços protetores.

Amou profundamente a todos, quando derramou sombras protetoras e benfazejas no destino de cada um. Cumpriu seu destino de árvore, como símbolo da vida, amparo dos passarinhos, dos insetos e das formigas; com sua seiva cheirosa, espalhava o perfume bom da emotividade e representava a essência da bondade.

E assim, na hora final, se despediu da casa em gemidos inaudíveis na dura luta para se manter de pé diante da ventania. Numa chamada da saudade, lembrou de todos e de todos se despediu com o coração verde de árvore, carregado de seiva adocicada, quando seu corpo quebrado, já descia o outeiro, em triste desabar para a morte e para o irremediável fim.

No estremecer das últimas folhas, no entendimento de que tudo morre para a renovação, ainda viu a casa tão bela lá em cima e, nos estertores da morte, balançou a última folhinha, comovido, como num arrepio, num derradeiro adeus.

Jatobazeiro querido, eu nunca mais vou te esquecer!

 

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Literatura e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura e Linguística pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG – [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias