O JOGO – PT 1
Diário da Manhã
Publicado em 22 de julho de 2016 às 21:41 | Atualizado há 9 anosEla estava sentada na mesa três do Ipê, no Castro’s, quando Ele entrou. Com o blazer de seu terninho à postos na cadeira, lia o cardápio com um ar de insolência que combinava com seus brincos esmeralda, à mesma cor de sua blusa de seda. Além dos brincos, um anel deveras simples para aquela imagem era tudo que ela usava. Seu ar era cansado, mas sem perder a compostura e a elegância que uma mulher como Ela teria. Aparentava trinta e poucos anos, mas essa aparência era traiçoeira. Era, claramente, uma mulher determinada, elegante e suficiente, linda e parecia tão solitária quanto seus outros adjetivos. E foi por isso que quando Ele a viu, não segurou um risinho fácil.
Ele estava acostumado com aquele tipo. Mulheres de negócios, que viviam em hotéis pelo Brasil, nem sempre solteiras, mas sempre carentes. Mulheres sozinhas que nunca rejeitavam uma companhia para jantar e beber um vinho, que já na meia idade, se encantavam facilmente pelos seus olhos claros e seus cabelos loiros e ondulados. Seu sorriso era a marca registrada, e tinha certeza que nenhum sutiã cansado, por baixo daqueles terninhos característicos, se aguentavam abertos quando ele o apresentava. Seu nome era qualquer outro, menos o verdadeiro. Sua profissão era qualquer uma, menos a sinceridade do desemprego. Suas roupas caras e seu relógio de grife enganavam até as mais desconfiadas, e naquela noite de verão, Ele jurou ter achado mais uma vítima.
Não pensou muito no que falar. Não era muito adepto de frases prontas, de desculpinhas para se aproximar. Seu estilo era mais direto. Se aproveitava do seu charme e do espanto do seu interesse juvenil para cativar a atenção das senhoras. Seu sucesso até aquele momento foi prova de que isso dava certo até demais. O terno risca de giz Armani magistralmente ajustado à sua cintura tinha sido presente de sua última conquista e transparecia o seu corpo em forma. Ele sabia que as mulheres o olhavam, e fazia disso seu estilo de vida. Que Deus o julgasse depois por isso, mas sentia um prazer ímpar a cada terninho que despia. Nem sempre guardavam corpos esplendorosos como o seu, mas nem só de pai você o homem, Ele pensava. Às vezes era necessário um sacrifício, sempre valia a pena. Sentou-se numa mesa próxima, para não parecer desesperado. Chamou o garçom. Um gim com tônica, por favor. Duas pedras de gelo.” Fingiu interesse no cardápio, ajeitou seus cabelos com a finesse que aprendeu com o tempo, e ali começava seu jogo.
Ela o notou, é claro, e quem não notaria? Com certeza era um dos rapazes mais bonitos e bem arrumados que Ela já vira, soube admitir. Ele a lembrou de alguns anos atrás, quando ela não trabalhava tanto e rapazes como Ele costumavam lhe flertar. Lembrou-se e riu internamente, porque seu semblante não mudou nem por um segundo. Para falar a verdade, ela notou sua presença, não seus detalhes, porque não se deu ao trabalho de desviar seu olhar. Já havia decidido pelo Nhoque se Banana Terra há alguns minutos, mas não quis parecer disponível. Quando finalmente abaixou o cardápio, tratou logo de chamar o garçom e fazer seu pedido, “e uma água com gás, por favor”. Olhou no relógio. 21h33. Queria estar dormindo até às 22h, mas a distração acabou com seus planos. Metódica como sempre, pegou o celular na bolsa para redefinir o despertador, e foi aí que Ela o ouviu.
“Água com gás? Um vinho não combina mais com uma sexta-feira à noite?”, Ele disse, já abrindo um sorriso que ele esperou ser retribuído. “Desculpe, não pude deixar de ouvir. Estou na cidade à trabalho, notei que também está sozinha. Se importa de eu lhe fazer companhia?”
Ela, finalmente o olhou de forma direta, e notou que Ele era ainda mais bonito do que achava. Com certeza era charmoso e bem mais jovem que ela. Com certeza ela estava de saco cheio da solidão que os hotéis sempre lhe proporcionaram e com certeza ela quis aceitar prontamente. Mas não foi o que ela fez.
“Talvez eu esteja esperando alguém, não há como você saber.” Ela disse, sem demonstrar um vestígio sequer de resposta para o sorriso ofertado. Guardou o celular, ajeitou a blusa. Respirou fundo, cruzou as mãos. Queria aparentar incômodo, mas o máximo que conseguiu foi aproximá-lo mais.
“Bom, nesse caso, é melhor eu me sentar. Sabe, para te proteger de qualquer cara que queira te incomodar. Sua companhia não gostaria que isso acontecesse, nem eu.” Ele respondeu insistindo no sorriso, e enquanto insistia. Abriu o botão do terno, sentando-se na cadeira à frente Dela. Não era a primeira vez que encontrava uma resistência inicial à sua aproximação, aquilo não o desanimou. Ela cederia, pensou ele, elas sempre cediam.
“Bom, respondendo a sua pergunta, a água com gás limpará meu paladar. Ainda estou tentando decidir qual vinho pedir. Me ajuda a dormir, voo amanhã cedo.” Ela disse, tentando entoar uma voz apenas de educação.
“Eu te ajudo, minha senhora, com todo o prazer. Não sou o maior dos conhecedores de vinho, mas a senhora não parece frágil o suficiente para um vinho branco, nem tão áspera para um tinto seco. Fiquemos com o suave, pois então. Nesse caso, buscamos algo tão sofisticado e encorpado como a senhora parece ser. Além disso, deve ser agradável ao gosto, amplo, explorando vários sentidos. Deve ser suave, mas intenso. Frágil, mas marcante. O Álamos Malbec seria uma ótima escolha. Se não conhece, me agradecerá por apresentar-lhe e, quem sabe, me dê o prazer de sua companhia por mais algum tempo. Se conhece, sabe que não estou mentindo.”
Ele encerrou sua fala como um caçador tem a certeza de ter acertado seu alvo. Sabia como dois mais dois são 4 e como a Terra sempre gira do oriente para o ocidente que estava no domínio da situação. Já imaginava como ela seria na cama, o cheiro que ela teria nua e como suspiraria em seu ouvido ao vibrar com sua viril juventude. Não segurou o sorriso, de novo, mas esse era diferente. Esse mostrava um pouquinho mais de suas intenções, mostrava que ele não estava ali apenas para um jantar. Levou as mãos ao rosto e acariciou a própria bochecha, lisa e perfeita. Olhou de sobreolho para o colo dos seios Dela, de maneira respeitosa, claro, mas que permitisse que Ela percebesse o que Ele fazia. Reparou em cada detalhe do rosto dela, desde a pinta do lado esquerdo do lábio inferior à pele marcada pela tensão de tanto franzir a testa. A achou linda, como poucas que passaram por ele seriam. Com Ela, Ele teria prazer de estar. Quase agradeceu a Deus por aquele baralho de mão cheia, mas sabia que Deus não concordava com o que Ele fazia. Preferiu não pensar muito nisso e se concentrar nos próximos passos. O jogo havia começado e ele estava ganhando.
Ela finalmente riu. Riu e olhou nos olhos Dele. Era um riso gostoso, de quem estava gostando do que acontecia. Isso só aumentou a certeza Dele de que tudo caminhava para mais uma noite de prazeres.
“Com certeza o Álamos é uma ótima escolha. Ele tem cor forte, assim como o gosto. Não decepciona se o que você quer é um vinho com bom custo/benefício. Infelizmente, me preocupo mais com qualidade do que com essa relação. Nesse aspecto, diria que é apenas um vinho mediano, que não estaria nem nos meus 5 primeiros dessa carta.”
Aquilo com certeza O pegou de surpresa, mas não era nada que sua lábia não pudesse concertar. Se preparava para responder, quando ela continuou.
“Mas eu entendo. Você vem aqui, se veste bem, cabelo impecável. Indiscutivelmente você é bonito. Observa as mulheres solitárias que estão num dia-a-dia chato e carente, cansadas, pedindo para cair do céu alguém que repare nelas. Alguém que lhe preste companhia, que olhe nos olhos delas. Alguém bonito, mais jovem, que com certeza vai amá-la na cama. Alguém que saiba escolher o vinho para ela. Alguém como você. E então, você, que não é bobo e não nasceu ontem, aparece, como mágica. Fico feliz que isso esteja dando certo, querido, mas me desculpe, eu sei escolher meus próprios vinhos.”
Essa sim era uma resposta que ele não estourava. Ela o leu com muito mais facilidade do que Ele mesmo, isso o impressionou. Ela era determinada, metódica e inteligente. Essa caça não seria tão fácil. Exigiria o melhor que Ele pudesse dar. Exigiria improviso, superação, paixão e insistência. Exigiria paciência e as palavras certas. Mas Ele ganharia, ele sempre ganhava. Se Ela achava que desistiria depois dessa, aquilo só tornou o jogo ainda mais interessante.
“Vamos cortar toda a besteira. Sem nomes, para diminuir uma mentira. Advogada, 34 anos. Solteira. Paulista. É tudo que você precisa saber. Você tem até o final do meu jantar para me convencer a ir pra cama com você. Vamos ser honestos, nós dois sabemos que é isso que você quer. Não vou te dar nem um real, se é só isso que te interessa, pode se retirar agora. Mas se quer se testar com alguém que joga esse jogo há muito mais tempo que você, sua chance é agora. 15 minutos, tudo que eu te dou. Fiz minha jogada, sua vez de jogar. Me surpreenda.”
Ele riu. Dessa vez um sorriso de quem foi pego de surpresa, surpresa boa, riso de desafio, de ganância, de tesão e de sentimento. Riso de quem queria se mostrar capaz. O jogo tinha virado completamente. Agora não era apenas um abate, era uma disputa. Disputa que Ele não ia perder. Ele sempre ganha. Bebeu um gole de seu gim com tônica, afrouxou um pouco a gravata, arregaçou as mangas. Deu um último toque no cabelo. O jogo de verdade começava agora.
E em 15 minutos ele queria estar ganhando.
(Iago Silva é goiano, iporaense, estuda Medicina na UniEvangélica de Anápolis e entre uma aula e outra, faz horas de escritor.)