Opinião

O linguajar de Carmo,nossas palavras caipiras e os neologismos de Guimarães Rosa

Redação DM

Publicado em 11 de novembro de 2016 às 02:04 | Atualizado há 5 meses

Liberato Póvoa 2

Estes diinhas, um leitor daqui de Goiânia me passou um imei estranhando umas palavras meio atravessadas que não cabiam no entendimento de quem nunca foi ao sertão, ficando privados do gostoso falar do homem da roça. Uma das palavras que lhe soaram estranhas foi “isturdia”, e agora explico: significa “dias atrás”, “recentemente”. Mas não se trata de neologismo, sendo apenas uma deturpação de “estes dias”, no dizer do sertanejo.

E pegando uma ponga na sua pergunta, devo dizer que se emprego as palavras sertanejas que sempre utilizo nestas mal traçadas linhas é porque se não forem escritas acabam engolidas pelas sombras do esquecimento assim como o órgão que, não sendo exercitado, acaba se atrofiando.

Lá pelos anos setenta, quando escrevia em Belo Horizonte, diariamente a “Coluna do Liberato” no “Jornal de Minas”, entremeando crônicas e crítica literária, recebi de uma editora, cujo nome não me ocorre agora, o livro “Jurubatuba”, de Carmo Bernardes, um romance que alia o rústico ao belo, o poético ao real e que funde com naturalidade o lírico e o épico. Alegre e atirado com as mulheres, protetor dos fracos e das crianças, esperto com os homens, mas ingênuo com a humanidade, seu herói é um Dom Quixote sertanejo. O relato da vida do seu personagem central na fazenda Jurubatuba, repleta de lições sobre plantas, bichos e gente, temperando o fraseado erudito com o linguajar roceiro fluente, saboroso. No livro, Carmo desenha caracteres solitários, ora frágeis, ora ambíguos, que constituem o que de mais precioso trabalha o romance: a condição humana das personagens.

Após ler o livro, quase de uma sentada, apressei-me em emitir minha opinião, acabando por cutucar onça com vara curta, ao fazer uma comparação do nosso homem da Macambira com o imortal Guimarães Rosa, que é tido nas alterosas como verdadeiro mito. Referi-me apenas ao linguajar, pois como ficcionista e retratista do sertão mineiro, Rosa é fantástico.

Quando disse que preferia o homem da Macambira ao de Cordisburgo, porque Carmo empregava as palavras – certas ou erradas – tiradas da boca do povo, enquanto o velho Rosa criara neologismos muito elaborados e artificiais, a mineirada caiu de pau pra riba de mim, como se eu tivesse cometido um verdadeiro sacrilégio, uma heresia que, se nos tempos da Inquisição, me levariam à fogueira, talqualmente Joana D´Arc. Mas sustentei minha opinião, até que eles me largaram de mão.

É por isso que não me arrependo de botar no papel palavras que soam estranhas para o leitor daqui da cidade grande, que não teve o umbigo enterrado na porteira de um curral, como é a tradição sertaneja. E, mais de quarenta anos depois, deu-me na telha de mostrar que o linguajar de Guimarães Rosa, que sempre respeitei e ainda respeito muito, quero mostrar que seu regionalismo não tem o gostoso cheiro da terra das primeiras chuvas nem da bosta de gado que se respira no moirão de um curral.

Guimarães Rosa não conseguiu fazer com que suas criações fossem parar nos dicionários, a não ser quando se estuda seus livros. Querem ver?

Alguém já ouviu falar em “arreleque”. Creio que não, mas para ele é o pássaro voar com as asas abertas em forma de leque; “circuntristeza” é a tristeza circundante; “coraçãomente” é cordialmente; “enxadachim” foi o termo criado para designar mum trabalhador do campo, que luta para sobreviver, derivado de enxada (ganho de vida) e espadachim (defesa); o neologismo “nonada” vem a ser coisa sem importância, e às vezes a gente encontra a expressão “por coisas de nonada”.

Mas ainda existem certos neologismos roseanos, que dificilmente se empregam e não se veem na nossa literatura, como “suspirâncias” (suspiros repetidos), “imitaricar” (arremedar, imitar repetidas vezes, com deboche, outras pessoas), “ensimesmudo”, que é a junção de “ensimesmado” e “mudo”, para significar a pessoa ferchada e taciturno; “embriagatinhar”, para designar a pessoa que não consegue ficar de pé devido à bebida, tendo que andar de gatinhas pelo chão; “Mimbauamanhanaçara”, um termo extremamente esquisito e quase impronunciável para desitgnar vaqueiro ou “o que vigia o gado”. Para criar a palavra, o autor fundiu os termos tupi “mimbaua” (criação, animal doméstico) e “manhana” (vigia) e adicionou o sufixo “çara” (que faz).

Mas existem mais esquisitices no “Grande Sertão: Veredas”, “Sagarana”, “Corpo de Baile”, “Tutaméia” e outros, que ninguém ousa escrever: “fluifim”, que é a junção de “fluir” e “fino”, para designar o que é pequenino e gracioso; “velvo”, para designar a planta com folhas aveludadas, palavra que ele importou do inglês “velvet” (veludo); “taurophtongo”, que seria mugido, voz de touro; o escritor recorreu aos termos gregos “táuros” (touro) e “phtoggos” (som da fala). E por aí vai.

Cá comigo, mais apegado ao linguajar goiano-tocantinense, é muito mais gostoso usar-se uma palavra que a semântica convencionou ser outra: “dianteiro” ou “traseiro”, para designar o carro-de-bois com excesso de carga na frente ou atrás; “faltar” (morrer); “gastar” (consumir principalmente cigarro); “fato” (vísceras); água “esperta” (morna, quase quente); café “escoteiro” (puro, sem acompanhamento); “isca” (o acompanhamento do café), “maneira” (abertura lateral na saia); “livro” (parte do bucho da rês, composta de camadas que lembram folhas de um livro); “lombo” (filé); “malhada” (local onde o gado de reúne para remoer; e é também o coco macaúba remoído e regurgitado); “maloca” (rebanho de gado que pasta em determinado local); “madre” (útero); “melado” (animal da cor de mel, também chamado “sabaruno”); “movido” (diz-se do fruto que não se desenvolveu); “palanque” (poste ou moirão de cerca ou curral); “peçonha” (o primeiro leite da vaca, colostro); “penso” (fora de prumo ou curativo); “positivo” (missão específica incumbida a uma pessoa); “preguiçoso” de caça ou de peixe (escasso); “prato” (medida de capacidade equivalente a dois litros); “provocar” (ter náuseas); “preguiçosa” (espreguiçadeira); “prosódico” (falante, loquaz); “sentinela” (velório); “quadra” (época); “sistema” (veneta, humor); “solteiro” (diz-se do gado que não está com cria); “tarefa” (medida de extensão equivalente a 80 braças); “torneira” (cabide de parece para dependurar chapéus); “tubo” de linha (retrós); “transar” (trocar cheque pré-datado com agiota); “vazio” (a parte mole da barriga); “volta (colar ou cordão); “vivo” (debrum ou enfeite de cor diferente na roupa). E por aí vai.

A lista é extensa. Mas garanto que são termos muito mais gostosos de se ouvir do que os neologismos de Guimarães Rosa.

Daí, eu preferir o linguajar rústico e espontâneo de Carmo Bernardes.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])


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