Opinião

O menino que sabe voar

Redação DM

Publicado em 16 de agosto de 2016 às 02:35 | Atualizado há 9 anos

Assim ele se colocava em frente ao computador, logo seu voo se iniciava. Gostava de ir a Brasília, São Paulo e aonde mais a imaginação o levava.

Ali um simples e caseiro simulador de voo se transformava em um grande pássaro de sonhos encantador.

O menino ali ficava, pés que o chão mal alcançava. Sentadinho na cadeira que por ora era parte de sua cabine de voo. Olhos vidrados, corpinho presente, mas alma distante voava descobrindo pelo imaginário novas rotas, novas cidades, novos mundos.

Sobre as nuvens dos sonhos, acima e bem acima das razões e sentidos pre-estabelecidos ele flutuava para longe da aspereza da vida, das tensas preocupações e das más intenções.

Por horas a fio voava sem se cansar. Parava vez ou outra para reabastecer sua aeronave. Leite com chocolate ele pedia. Com o tanque cheio logo partia sem demora, sem perder tempo alçava novos, demorados e audaciosos voos.

Acidente sofrera vários. Mas por nenhum se deu por vencido. Sorria, sorria muito a cada queda. E daí, sem problemas, bastava recomeçar. E de recomeço em recomeço ia ele voando e superando quedas sofridas. Sem choro, não, não chorava, simplesmente recomeçava.

O único momento triste do dia era justamente seu fim. Isto significava o fim da rota pelo menos por um tempo. Parada obrigatória para repor as energias para mais voos, como se isto fosse necessário ao pequeno comandante. Mas era preciso, afinal, voar mesmo que sem sair do chão também é cansativo, se preocupava sua mãe.

Assim, plenamente abastecido, noite caindo, sono chegando, partia para seu leito onde novos planos de voos para o dia seguinte eram traçados.

Ficava eu olhando, espantado e encantado me perguntando: que graça há nisto? Ele mal entende o que é um computador, simulador de voo então, ou mesmo um avião. Não sabe onde fica Brasília ou São Paulo. Mas uma coisa é certa, ele entende do mais importante, voo. Ele sabe voar. O que mais importa, ele sabe voar.

Não seria este um dos males do envelhecer? Perder a capacidade de alçar voos com os pés no chão? Não mais acreditar que é possível? Com o passar do tempo a vida, se assim permitir, corta impiedosamente as asas impedindo lindos voos.

Se o fim do dia era de tristeza para o pequeno comandante, mais triste ainda é deixar de voar por achar que na vida adulta não há mais espaço para imaginações infantis e que a vida é coisa séria e sisudo deve-se comportar.

No outro dia lá ia ele, cedo, despertado, sorridente. Com o dedinho indicador aperta suavemente o botão que aciona sua aeronave. Parece uma eternidade, nada de imagem na tela. De repente surgem as letras iniciais, corre o tempo de inicialização, pronto, computador ligado, ou melhor, o acionamento de sua aeronave foi liberado,  clicando no ícone simulador de voo um novo mundo se abre. Ajeita-se na cadeira. Agora a sala se transforma em sua cabine de comando. Apertem os cintos, ele grita. Todos prontos? Partia ele para novos voos.

Com aceno radiante se despede e vai. São Paulo, depois Brasília, e assim mais um dia de voo recomeça até a hora de o banho chegar.

É contagiante, ao mesmo tempo espantoso. Quanta criatividade. Surpreende que não canse. Horas e horas se vão, passam como em fração de segundos, segundo a sua visão.

Fico em meu íntimo aguardando a minha hora de embarcar na aeronave deste pequeno comandante, mas não tenho bilhete, a passagem não tem preço, bastaria como ele mesmo diz, ter imaginação. Neste voo só cabe os que sonham.

Ah!!! Que tristeza esta de viver em um saguão, sem passagem, sem bilhete, sem rumo, sem avião, sem criatividade nem visão, sem sonhos ou mesmo imaginação.

O pequeno comandante, no entanto, não para. Se São Paulo já passou, Brasília que lhe aguarda. Se ninguém com ele vai, o que lhe importa, não para, não questiona, não tenta buscar razões, ele não tem tempo a perder, simplesmente decola e alto sobe ao nível da imaginação.

Para minha surpresa ou mesmo por não querer acreditar, aquele comandante dos sonhos em outros céus fora voar. Sim, sem se despedir, a sala que por um bom tempo foi sua cabine de voo se tornara vazia e sem graça. Obscurecida pela sua ausência, aquele lugar nunca mais brilhou, ficando a lembrança de momentos que em mim se eternizou, fica a saudade dos voos que ele sem sair do chão realizou.

Ele continua a voar, encantando a muitos e despertando o sonhar.

Quem sabe um dia ele pouse novamente por perto. Neste dia com bilhete na mão, preparado e novamente encantado, adentre seu avião para longas jornadas nos céus da imaginação.

Este é seu maior legado, um coração que não sonha, não imagina, a uma profunda tristeza e vida sem significado já está condenado.

 

(Flávio Martins Cardoso, escritor)

 

 

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