O menino que tinha preguiça de falar
Redação DM
Publicado em 16 de fevereiro de 2018 às 23:44 | Atualizado há 7 anos
Há passagens do cotidiano da vida que, remotas e simples que sejam, merecem ser relembradas e transformadas em acontecimentos dignos de tradição não apenas oral mas também escrita. Fatos corriqueiros e jocosos do convívio familiar de outrora soem cair no esquecimento quando não registrados para a posteridade. Feliz ou infelizmente, o advento da Internet contribuiu para amenizar essa constatação, em face da ampla exposição nas redes sociais do que se passa no dia a dia das pessoas.
O que vou contar, embora pareça simplório ou desimportante, servirá, quem sabe, de ensejo para rememorar costumes de antanho, num episódio de desfecho cômico e irreverente.
Moradora pioneira de Campinas, falecida em Goiânia em 2014, na lucidez de seus 104 anos, minha sogra Dona Delfina Rosa e Silva era dotada de memória invejável, evidenciada sobretudo quando estimulada a relatar fatos de sua infância e adolescência.
Ante minhas provocações, uma tarde relatou-me que, por volta da segunda década do século passado, morava na fazenda de seus pais um menino muito tímido, retraído e esquivo, motivo da preocupação de todos por já haver atingido a idade de cinco anos sem falar com as pessoas. Restringia-se a balbuciar alguns sons, apenas papá, mamã, dá, tio, tia, dando a impressão de preguiça de conversar, comportamento excepcional de algumas crianças que encontra explicação na dissociabilidade e no isolamento daquela época.
O avô de Dona Delfina, na sua experiência e natural psicologia, ao observar e analisar atentamente os modos do pequeno semimudo, resolveu adotar medida drástica. Logo cedo, removeu o pote de barro da bancada baixa existente na cozinha e elevou-o a uma altura fora do alcance do menino, nem que ele subisse no tamborete.
Quem não se lembra da brilhante caneca de alumínio, sempre cuidadosamente areada, em que se bebia água cristalina retirada diretamente do pote? Nem havia os filtros, menos ainda os modernos bebedouros!
Pois bem. Essa satisfação já não poderia ter o guri que, taciturno e retraído mais ainda, curtiu sua sede(ê) o dia inteiro.
Já de noite, após o jantar, cada vez mais sedento e não suportando o castigo, a opiniosa criança aproximou-se da avó à beira do fogão e, puxando-lhe a barra da saia, destampou:
– Dá água, filha da puta !
Desde então, deixou a preguiça de lado e virou um tagarela de primeira!
(Raymundo Moreira Nascimento, professor, advogado, jornalista e escritor)