Opinião

O Pantera Negra e o STF

Diário da Manhã

Publicado em 3 de março de 2016 às 23:46 | Atualizado há 9 anos

Albert Wood Fox ficou segregado 45 anos numa solitária de prisão no Estado de Louisiana – EUA. Para ver o mundo, lia e ativava sua imaginação. Trilhou o que escreveu Pessoa em “O Livro do Desassossego”: “Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir. (…) É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como as outras. (…) Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero de minhas sensações?”

O pantera negra, alusão a grupo que lutava contra a discriminação racial nos EUA, na solitária conversou, pelos olhos e cérebro, com livros de história, biografia de Malcolm X, um dos maiores defensores do Nacionalismo Negro nos EUA, Martin Luther King, Frantz Fanon, psiquiatra, filósofo e ensaísta francês da Martinica, James Baldwin, escritor de ensaios, romances e peças teatrais, o primeiro a dizer aos brancos o que os negros pensavam. Assim passou 45 anos. Agora libertado, insiste em sua inocência.

Acusação e condenação foram pela morte do policial Brent Miller. Nebulosas, a ponto de a esposa da vítima, Gerarde Teenie Verret, declarar que acreditava em sua inocência. Pelo que se vê da imagem, saiu firme e forte do cárcere, algo inimaginável no Brasil, ainda que ao cabo de trinta anos, nosso marco reclusivo máximo.

Farta de ser agredida, a população brasileira, a grande imprensa e boa parte de nossos melhores e cultos juristas, não só aplaudiram, como consideraram um dia histórico do Supremo Tribunal Federal do Brasil, a última quinta-feira em que se decidiu que o acusado pode ser recolhido à prisão logo após a decisão de um colegiado (Tribunal), independentemente do trânsito em julgado do acórdão. O ilustre Ministro Teori Zavazky minimizou eventuais consequências danosas ao inocente, posto que os recursos aos Tribunais Superiores só cuidam de matéria de direito. Se o fato (autoria e materialidade) está comprovado, não há porque deixar essa enorme população criminosa fora de nossas pocilgas. Se a divergência é de direito, e os Tribunais Superiores venham a divergir da firmada pelo acórdão regional, alguém que não violou o direito penal cumpriu pena. Pouco importa…

Se a matéria é de fato, também pouco importa se a decisão regional se deu por maioria e não por unanimidade. Mas, como esta é burra, a maioria não erra. O cumprimento de pena foi justo. Se a matéria é de competência originária do Tribunal, pouco importa, também, nossa palavra empenhada no Pacto de Direitos Humanos de São José da Costa Rica, ao garantir ao acusado criminal duplicidade de jurisdição.

Por fim, e aqui reside o ponto capital, nada importa que a Constituição Federal disponha em sentido contrário ao decidido pela Suprema Corte. Constituição não é Constituição, senão Constituição interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, diz-se, sem autoritarismo judiciário… Ocorre que a violência, como é curial, atingiu níveis insuportáveis. E, no ponto, a Constituição não poderia ser emendada pelo Parlamento, posto tratar-se de cláusula pétrea, inserida no capítulo dos direitos e garantias individuais. Ou uma nova Constituinte, que, por muito mais, não se convoca, ou por decisão da Corte Suprema, como ocorreu.

Já se percebeu, porém, a delicadeza do tema. Logo, impõe-se ao Supremo pronunciar-se “cum grano salis”. A verdade está no meio, disseram muitos pensadores, e a beleza nas cores intermédias, segundo Leonardo da Vinci. Se a decisão deve ser tomada, a complexidade das exceções não pode ser desprezada. Não por acaso o símbolo da justiça é a balança. Sempre é possível sopesar, agir com temperamento. Aos eminentes Ministros cabia o pensamento de Frantz Fanon, acima referido, ao dizer aos brancos o que os negros pensam; o que pensam e sentem  inocentes encarcerados? Para isso aportaram a este mundo?

Ao apreciar eventuais embargos de declaração, se interpostos, o Supremo pode continuar a perseguir o justo ótimo, nessas condições histórico-sociais. Levar em conta os acórdãos regionais adotados por maioria e não por unanimidade; considerar nosso compromisso internacional referente ao duplo grau de jurisdição; não aplicar a decisão quando se tratar de divergência jurisprudencial  ou controvérsia doutrinária séria instaurada sobre a natureza criminosa do fato, hipóteses sujeitas à reserva da palavra final das instâncias superiores, antes do início da imposição da pena.

Não é a melhor solução, porque a Constituição Federal está sendo massacrada. Ocorre que o povo vai às ruas contra aumento de alguns centavos nas passagens de ônibus, não em busca de um novo Poder Nacional Constituinte, exclusivo, livre e soberano.

 

(Amadeu Garrido, autor do livro “Universo Invisível” neste artigo, faz uma análise crítica sobre uma recente decisão do STF. O jurista afirma que “O povo vai às ruas contra o aumento de alguns centavos, mas não em busca de um novo Poder Nacional Constituinte, exclusivo, livre e soberano”)


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