Opinião

O povo também somos culpados

Redação DM

Publicado em 15 de janeiro de 2017 às 00:14 | Atualizado há 8 anos

Sou culpado, confesso. Foi por culpa minha que ocorram os assassinatos de presos no Amazonas e em Roraima. Não sou, porém, o único culpado. A grande culpada, da qual não se falou ainda, é a sociedade brasileira, da qual faço parte.

Culpar governos é fácil. Eles são culpados, claro, mas nós, a sociedade, somos muito mais culpados ainda.

O povo brasileiro deixou-se barbarizar pelos profetas da violências. Eles pregam através das Tvs, nos programas de jornalismo mundo cão: eles pontificam pelos jornais, pelas redes sociais, em toda parte. Acontecimentos como os que acabamos de ver certificam o quanto o Brasil vai regridindo em termos civilizatórios. De que adianta ser a oitava economia do mundo ( será qua ainda somos) se o pequenino Uruguay, ali ao lado, a cada dia desponta como exemplo de Nação evoluída, culta, justa, esclarecida? O Urugay nem ao menos é uma potencia industrial, mas já atingiu o etágio de civilização, enquanto o Brasil vai aparecendo aos olhos do mundo como um país bárbaro.

O filósofo italiano Norberto Bobbio, autor de “Teoria Geral da Política”, afirma que se pode avaliar “o grau de civilidade de uma sociedade pela forma como trata as crianças, os velhos e os prisioneiros”. Quanto mais selvagem e mais bárbara a sociedade, pontifica o teórico do garantismo jurídico, “pior o tratamento que dá a essas categorias de pessoas”.

Apesar disso, temos leis altgamente civilizadas. Um estrangeiro, digamos um europeu, que se dê o trabalho de ler nossa Constituição e nossa lei de execução penal certamente vai exclamar: “Aí está um país altamente civilizado”! Mas ao peceber o enorme abismo que separa a generosidade da lei com a realidade dos presídios brasileiros, se perguntará por que uma lei tão civilizada, tão avançada, é sistematicamente ignorada, injuriada, pelos que deviam executá-la? Como explicar tão absurda contradição?

A lei de execução penal brasileira é unformada por uma filosofia altamente humanista, que tem como princípio basilar a dignidade da pessoa do presidiário. É baseada em uma ideologia generosa que acredita na possibilidade do homem reeerguer-se do opóbrio e, após certo período de segregação, voltar à sociedade como cidadão prestante. Por isso denomina de “reeducandos” os presos sentenciados. A pena não é vista como vingança social, mas como técnica de ressocialização. Se não há como reparar o malfeito, espera-se ao menos que o mal não se repita. O humanismo por trás da lei de execução penal retem o ideal cristão de que o pecador pode transcender à sua vil e miserável condição pelo arrependimento sincero, que consiste em se engajar nas boas causas.

Jesus se dava com criminosos, com prostitutas, com leprosos, com publicanos. Ele preferia a companhia da escumalha da terra ao convívivo com os ostentadores de virtudes. Mas esta sociedade brasileira, que se acredita cristã, católica e evangélica, cruxificaria Jesus novamente se o encontrasse. A ética contida nos evagelhos é a absoluta negação do que o povo brasileiro atualmente pensa, é a destruição complea dos nossos foros de nação que se pretende civilizada.

A sociedade brasileira não acredita que alguém que tenha passado por um presídio possa se regenerar. Sua concepção filosófica do homem é a de que ele é fundamentalmente mau. Estimulados pelos Datenas, pelos Marcelos Rezendes, pelos Oloares e outros assombradores, o povo acredita preconceituosamente que “bandido” jamais será reabilitado.

Por mais de 20 anos exerci a advocacia criminal. Cansei de ir a presídios. Sei como as coisas são por lá. No entanto, acreditem, sei de muita gente que saiu da prisão diposta a nunca mais delinquir. E não delinquiu. Conheço muita gente que está regenerada e hoje goza do respeito de seus vizinhos.

O que nunca vi é matéria jornalística sobre os que sairam regenerados da cadeia. Sei que é dificil fazer esse tipo de reportagem. Os que se regeneram não gostam de se expor. Sabem que o estigma de ex-presidiário flcha-lhes todas as portas. O preconceito contra o ex-presidiário é um estímulo a que ele retorne à criminalidade. Por isso, os que se regeneraram, e são maioria, preferem manter debaixo de uma pedra tumular história da vida que tiveram nos cárceres. Não há glória em ter sido preso. Não há mérito em ter alcançado a regeneração.

É assim que triunfa o consendo de que penitenciária é universidade do crime, quando a verdadeira universidade é o meio social em que vivemos. O povo encara o “bandido” não apenas o marginal que está nas ruas matando e roubando, mas também aquele que está purgando nos cárceres o seu passado celerado. O reeducando também é “bandido”.

O povo acredita que para “bandido” não existem direitos humanos. O povo cristão, católico e envangélico, acredita que bandido bom é bandido morto. O “bandido”, ao optar pela bandidagem, excluiu-se da humanidade e da cidadania. Ou melhor: excluiram-no. Assim, na visão muito cristã, muito católica e muito evangélica deste povo de Deus, contra o “bandido” tudo é permitido. Nenhum sofrimento será bastante para ele. “Bandido” não gente.

A lei! Ora, a lei!

As leis escritas, publicadas e ensinadas nas faculdades de Direito, determinam que as penas serão apenas de privação de liberdade, de multa e de restrições de direitos. Diz que não haverá penas infamantes e que não se permitirá tratamento cruel. Mas o povo cristão do Brasil acha que a lei que vale não é a escrita, mas o que ele acha ser o justo segundo sua peculiar lei do coração: olho por cabeça, dente por cabeça.

Não é suficiente prender o “bandido”. Ele tem que sofrer no corpo e na alma. Ele tem que viver em celas superlotadas piores do que chiqueiro. Têm que comer lavagem que porco nenhum aceita. E se ficar doente, que sofra e morra de doença. Dias atrás, um jornal televisivo mostrou presos em uma cela ouvindo música, cantando e dançando. O locutor rugiu de indignação. Quanta desfaçatez! Preso acha que pode gozar momentos de alegria! Preso não pode cantar nem dançar. Tem mais é que gemer, tem mais é que chorar, tem mais é que apanhar de chibata, tem mais é que andar sujo e fedido. É como cristamente pensamos,nós, o povo.

Nossos governos refletem em suas ações e omissões a baixa moralidade popular. Se é o povo que aplaude as degradantes condições carcerárias no Brasil, achando até que deveriam ser ainda mais degradantes, que razão teriam os governantes para contrariar o eleitorado? Para que fazer o que determinam as leis se dar tratamento humano a “bandido” não rende voto? Aliás, faz é perder voto.

O povo olha com amarga hostilidade para uns tais “direitos humanos”. E os astros do jornalismo mundo cão reverberam demagogicamente que “a polícia não pode fazer nada, porque aí vem os Direitos Humanos…” Referem-se não a, mas aos “Direitos Humanos” como se fossem uma organização satânica que se compraz em sabotar a atuação da polícia e dos governos contra os “bandidos”.

Como ensinar a este povo analfabeto, ignorante e boçal que “direitos humanos” é um conjunto de normas tutelares da pessoa humana a que todos ser humano faz jus apenas por pertencer ao gênero humano. Mas, como já disse, “bandidos” não fazem parte do gênro humano. Neste caso, eles que invoquem a lei de proteção aos animais para que posam ser tratados com um mínimo de dignidade e respeito devido até aos cães de rua.

Direitos humanos é uma filosofia desenvolvida pelo francês Jacques Maritain, a quem a ONU incumbiu de redigir a sua Carta dos Direitos Humanos. Maritain nunca foi ateu, nem comunista, anarquista ou algo que o valha. Era católico praticante. Se a carta dos Direitos do Homem foi inspirada nos ideais iluministas dos que fizeram a revolução francesa, os Direitos Humanos foram inspirados no ensinamento libertário de Jesus. Mas querer que os cristãos brasileiros, católicos e envangélicos, compreendam minimamente o que Jesus pregou, é querer ensinar as pedras a pensar. O Brasil endureceu o seu coração a um ponto tal que, no dia do Juízo, será julgado com muito mais rigor do que Sodoma e Gomorra.

Um rapaz idiota, filhinho de papai, nomeado para uma bem remuneradoa sinecura no Palácio do Planalto, lider dos jovens peemedebistas, disse que o bom mesmo é se houvesse, todos os dias, mais massacres como os de Manaus e Roraima. Ninguém se escandalizou. O que ele disse, “como cidadão”, é exatamente o que o povo pensa. O governador do Amazonas, tentando exonerar-se de suas responsabilidades, justificou que, entre os mortos, “ninguém era santo”. De fato, não eram. Se fossem, estariam no altar. Mas o estado é responsável pela segurança e integridade fiísica do presidiário, seja ele santo ou não. Se falha no cumprimento deste dever, perde sua razão de ser, e será condenado a indenizar. As famílias dos mortos certamente vão cobrar indenização ao governo estadual. E o contribuinte terá que pagar. Mas vai pagar satistisfeito já que bandido bom é bandido morto.

Então é isso. Se a própria sociedade não tem nenhum comprometimento com qualquer política de ressocialização do preso, por que os governos teriam? A lei é boa, é generosa, mas não funciona por que dos governadores aos agentes penitenciários ninguém leva a sério a ideologia por trás do texto legal. Ninguém se engaja na luta para tornar viva a letra da lei.

Precisamos de muito dinheiro para construir mais presídios. Mais dinheiro para fazer desses presídios lugares mimimanete decentes para os que neles vão morar. Dinheiro para dotá-los de oficinas, escolas técnicas, bibliotecas e todo tipo de equipamento que conduza à reeducação do presidiário. Mas, para isso, o estado não pode desertar do seu direito/dever de ressocializar o delinquente. Tercerizar o serviço é alienar orerrigatuvca que é sua, além de pagar ais por serviço ruim.

Cumprir a lei de execução penal custa caro. Posto que o populacho julga que “bandido bom é bandido morto”, e que respeito à sua dignidade humana é luxo que malfeitores não merecem, melhor é deixar tudo como está, e que os mortos enterrem os seus mortos.

Quando o Brasil sair da sua triste condição de nação bronca, bárbara e cruel; quando o brasileiro atingir um nível de civilização, baixo que seja, presídios superlotdos não exisitirão mais. Cadeia não será mais universidade do crime. PCCs e CVs perderão a razão de ser e por sí próprios serão volatizados. Isto vai acontecer quando, quem sabe, o povo brasileiro adotar o cristianismo.

 

(Helvécio Cardoso, jornalista)


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias