O prelúdio da cultura humana
Diário da Manhã
Publicado em 29 de setembro de 2018 às 04:25 | Atualizado há 7 anos
A cultura está a serviço da sociedade e do próprio governo. Ela é fator essencial aos interesses humanos, os quais inspiram, determinam e comandam ações e sentimentos na luta natural e permanente pelo desenvolvimento e pelas conquistas do ser humano, que é a única criatura do reino animal capaz de criar e manter cultura, ou seja, um desenvolvimento intelectual através de estudos ou por qualquer outro meio de atividade. Cada sociedade humana possui uma cultura própria e característica, de maneira que, em aspectos significativos os membros de uma sociedade comportam-se diferentemente dos membros de outra sociedade. Temos, por exemplo, o francês que beija seu companheiro nas duas faces; o americano aperta a mão direita movimentando-a como se estivesse bombeando água; os moradores das ilhas, no oceano índico, choram cerimoniosos e copiosamente quando cumprimentam um amigo ou parente que não vêem há muito tempo. A situação é idêntica em cada um desses exemplos, assim como é a função social do comportamento, ou seja, assegurar a expressão oral ou escrita, e reconstituir os laços especiais que existem entre as pessoas. Mas as culturas do francês, do americano e do ilhéu, exigem e produzem modos de agir diferentes. Isto não é mais do que um simples exemplo de padrão cultural. Entretanto, cultura é algo mais do que um conjunto de formas isoladas de comportamento. É a soma total, integrada, das características de procedimentos aprendidos que são manifestados nos membros de uma sociedade e compartilhados por todos.
A longa história do poder criador do homem no desenvolvimento da cultura começou há muito tempo, com o primeiro aparecimento da espécie humana. Para nós, hoje, o homem da idade da pedra (lascada e/ou polida) parece culturalmente pobre, por termo-nos distanciado tanto dele. No entanto, ele já havia iniciado o processo essencialmente humano de inventar e transmitir suas invenções a seus descentes. Em meados da Idade da Pedra, por exemplo, tinha dominado o fogo. Jamais se saberá o que teria ocorrido que levou alguns homens e mulheres a fazer uso doméstico, pela primeira vez, dessa força terrível e destruidora. E quais teriam sido as circunstâncias que os levaram a ferver a água sobre o fogo? Dificilmente poderiam ter visto água fervendo como forma da natureza. E como descobriram que podiam produzir fogo quando quisessem, friccionando dois pedaços de madeira, ou golpeando pedras entre si? Seja como for, mas na metade da idade da pedra, na Europa, o homem não tinha aprendido apenas essas coisas, transformara-as em parte da sua cultura transmitida. Aprendera a acender e conservar o fogo e podia usá-lo para aquecer-se, quando tivesse frio, e para cozinhar e preservar seus alimentos, além da defesa pessoal contra as feras que podiam matá-lo. Era uma invenção complexa a prenunciar a interminável carreira do homem como grande inventor.
O homem da idade da pedra destacou-se pela sua habilidade em fabricar vários implementos de sílex (rocha sedimentar silicatada), golpeando pedras quebradiças modelava instrumentos e armas. Em áreas e épocas diferentes, produziu instrumentos distintos, de formas típicas e padronizadas, que os especialistas podem identificar a área e o período a que pertence a maioria das peças de sílex em um museu moderno. Embora essa regularidade de formas, mantidas através dos séculos, nos lembre os ninhos característicos feitos sem variações pelo tordo (pássaro que no Brasil tem o sabiá como seu representante), ou pelo corvo, ela depende da aprendizagem e não pelo instinto. Talvez mais significativa ainda tenha sido a gradual invenção da linguagem, que implicava na classificação das coisas do ambiente em diferentes categorias ou classes. Envolvia a criação de verbos para mostrar como essas coisas podiam atuar sobre elas. Inicialmente implicava outras coisas ainda: O demorado desenvolvimento dos músculos empregados na articulação. Nos primórdios da idade da pedra, o homem tinha os músculos da língua menos desenvolvidos e isto certamente dificultada a sua fala. Não podemos saber quando a linguagem humana se tornou um conjunto de símbolos, mas seguramente isto resultou de um longo e lento processo. Hoje, porém, não se conhece tribo primitiva, por mais pobre que seja sua cultura material, que não tenha uma linguagem complicada e um vocabulário de palavras com sutis diferenças de sentido.
(Edmilson Alberto de Mello, escritor)