O princípio da responsabilidade e as futuras gerações
Diário da Manhã
Publicado em 15 de novembro de 2016 às 00:31 | Atualizado há 8 anosO artigo 226 da Constituição Federal, de 1988, que trata do meio ambiente, apresenta uma formulação ao final do caput, a qual tem uma genealogia interessante. No final do caput, lê-se que compete ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio ambiente e “preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
A expressão “futuras gerações” foi tomada pelos constituintes da obra e do pensamento do filósofo alemão Hans Jonas. De origem judaica, Jonas nasceu em 10 de maio de 1903 e faleceu em 5 de fevereiro de 1993. Foi discípulo de Martin Heidegger e com ele se inscreveu no pensamento da fenomenologia e da hermenêutica como modo de apreensão da realidade, em que o processo sempre é conduzido por interesses próprios da existência. Após a emigração forçada, por conta do contexto nazista na Europa Central, Jonas participou da criação do Estado de Israel.
A partir da década de 1960, Jonas passou a se dedicar aos estudos filosóficos, escrevendo nesse período a obra O fenômeno da vida: rumo a uma biologia filosófica. Neste caso, Jonas recepcionou ideias de Ernst Haeckel, que, no início do século 20, já havia escrito um capítulo de seu livro de biologia dedicado à ecologia, sendo, então, considerado o pai da ecologia. Os estudos de Jonas foram continuados na década seguinte, maturando a reflexão filosófica na magistral obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, publicada em 1979 e traduzida ao português somente em 2006.
Jonas articulou todo o seu trabalho filosófico com o objetivo de construir uma reflexão ética que ultrapassasse os limites daquilo que é imediato. Neste sentido, a sua discussão buscava superar conceitos de Kant, que havia estabelecido que para saber o que se deve fazer no tempo presente não há necessidade de uma perspicácia de longo alcance. Ou seja, a ponderação ética, segundo Kant, deveria levar em conta somente as ações imediatas no presente, adequando a prática ao estatuto legal estabelecido.
Jonas, por sua vez, partia do pressuposto de que a técnica e a civilização tecnológica haviam colocado novos patamares para o desenvolvimento humano e para a própria natureza. Para ele, a natureza e o próprio ser humano estavam subjugados ao poder e às ameaças do mundo tecnológico, visto que este impõe ritmos cada vez mais acelerados, comprimindo tempos, com capacidade para abalar os fundamentos e a lógica do mundo natural. Com isso, Jonas inseriu na reflexão ético-filosófica a noção da vulnerabilidade da natureza por meio dos processos tecnológicos acelerados. Considerando que o ser humano é o homo faber produtor destes processos, mas, simultaneamente, ele é um ser necessitado do ambiente natural para a sua própria sobrevivência enquanto espécie, Jonas articulou o conceito do “princípio responsabilidade”, buscando superar a visão meramente antropocêntrica – isto é, centrada somente no ser humano. Foi um dos primeiros teóricos a questionar se a natureza tem direitos próprios, que devem ser protegidos, eventualmente, na condição de direitos difusos. A vulnerabilidade da natureza também era enriquecida com a percepção da cumulatividade dos resultados, muitas vezes nefastos, dos processos tecnológicos sobre o ambiente e o ser humano, acrescido da noção de irreversibilidade em um conjunto de ações.
Este arcabouço levou o filósofo Hans Jonas à elaboração da noção das “futuras gerações”. Conjugando a ideia de vulnerabilidade da natureza com a da cumulatividade dos processos técnicos, bem como com a da irreversibilidade de muitos de seus resultados, e tendo em vista a necessidade de sobrevivência da espécie humana, as “futuras gerações” passaram a ser inseridas na arquitetura das reflexões ético-filosóficas, ultrapassando-se, assim, a dimensão imediata da adequação ética entre prática e estatuto legal. Os direitos das gerações futuras a ter, por exemplo, acesso a um meio ambiente preservado ainda precisavam ser positivados.
Neste caso, a filosofia tomou a dianteira, sendo protagonista para o desenvolvimento de um conjunto normativo que fez emergir uma gama de reflexões e positivações jurídicas na seara do contemporâneo direito ambiental. Assim, o meio ambiente passou a ser elemento necessitado de cuidado, expresso na ideia de que a responsabilidade dos humanos com o seu ambiente se estende para muito além dos direitos das presentes gerações, abarcando as “futuras gerações”. Que bom que entre os parlamentares constituintes havia leitores de obras de filosofia!
(Haroldo Reimer, professor e reitor da UEG; graduado em Teologia, Filosofia e Direito, pós-doutor em História pela Unicamp; bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq/MCTIC)