Opinião

O velho Vítor, ignorante e bom

Diário da Manhã

Publicado em 2 de fevereiro de 2017 às 01:02 | Atualizado há 8 anos

Numa das últimas vezes em que estive no sertão tocantinense, não tive a oportunidade de me avistar com o velho Vítor, mercê do corre-corre que sempre encolhe as férias.

Preto, retinto, baixinho, pernas arqueadas como se ele houvesse sido criado no lombo da montaria, cabelos brancos feito algodão tal qual a e barba meio encardida em redor da boca pelo sarro do inseparável cachimbo de barro, pés rachados de tanto andar descalço nos gorgulhos da fazenda Montes Claros, no sertão de Conceição do Tocantins, o velho Vítor morava com a velha Gertrudes, companheira de muitas décadas, também preta e talqualmente idosa como ele.

Acho que ele devia ser lá do limiar do século, pelos causos que contava, acontecidos no tempo do onça, de que ele se dizia testemunha ocular. Uma espécie de cas-cão cobrindo a pele, à feição de placas de tiririca, era a forma de certidão de sua idade, cheia de experiência, de mansidão, de subserviência e sobretudo de uma ignorância indolente, pois morando há quase cinquenta anos nos Montes Claros, não tivera sequer a deliberação de adquirir pelo usucapião a terra de que sempre cuidou em nome dos outros, que lhe garantiria uma propriedade.

Se Deus não lhe deu herdeiros pela esterilidade do leito, um pedaço da terra, se vendida, propiciar-lhe-ia pelo menos viver como gente e mudar-se do ranchinho, que vivia num cai-não-cai. Enquanto isto, Vítor vinha sendo ilhado por posseiros, que estão agora em cômoda situação, pois estes, sim, é que levaram a sério a escola da esperteza.

Não obstante a idade, que reputava na casa dos quase setenta naquela época, o velho Vítor, ainda era homem de campear, de a pé, seu gadinho ralo espalhado nas enseadas do córrego São Pedro, fruto da sorte na vaqueirice temporona que exerceu por alguns anos. Certa vez, um helicóptero passou perdido lá onde morava e teve de pousar por uma causa qualquer no terreiro da frente do rancho beira-chão onde morava.

Pra quem só tinha visto jipe, a chegada daquela engrisia foi um assombro, e o velho Vítor mais a velha Gertrudes caíram na capoeira e só voltaram quando ele subiu de novo e soverteu no mundo. E ele contou, cheio de gestos de assombro:

– Quando vi aquela engenhoca com um papa-vento no lombo fofar a asa e descer no meu terreiro, meu fio, eu mais a muié caímo na saroba, cuidano que aquele coiso zoadento tinha vindo era pra comer a gente!

Sempre que me aventurava a ir dar uma pescada de traíra nos porongos do leito dos córregos que passam lá nos Montes Claros, o velho Vítor se desmanchava em oferecimentos para acompanhar a gente, e se incumbia de consinar os pontos onde havia peixes e de arranjar as iscas mais adequadas, sem se falar nas caçadas de jacu, em que ele mostrava as taperas menos preguiçosas de caça, para que não voltássemos de mãos abanando. Quando falava em paga, ele pulava de banda, que estava ali por gosto, e não atrás de pago.

No nosso último encontro, tive a cadência de contar nada menos que dezoito cachorros que ele criava e que o acompanhavam por todo canto, lembrando aquelas célebres matilhas de caça à raposa feitas pelos nobres europeus de antanho.

Numa região desrecursosa até para o sustento, os cães não passavam necessidade, pois ele saía para caçar pacas e veados unicamente para alimentá-los. Dessa vez, soube que sua matilha dobrara, sendo agora quase quarenta sabujos magrelos de costelas expostas.

Contrariando a praxe sertaneja, o bom e resistente velhinho jamais afogou os filhotes, que sempre são uma expectativa de ameaça de divisão do sustento da família.

Seu amor pela cachorrada é tanto, que certa vez uma de suas cadelas pariu no mato, e ao descobrir a ninhada, ele foi em casa buscar um balaio para levar os cátulos para seu rancho.

Quando retornou, ao contar os filhotes, sentiu falta de um. O velho passou dois dias no mato procurando o bichinho, que àquela altura, devia estar no bucho de algum bicho do mato, que burlara a vigilância da cadela para ganhar um almoço de carne macia. Quase foi para a cama pela perda do cachorrinho.

Deus que guarde, lá no céu, o velho Vítor, com sua bondade, o que é um exemplo para este mundo cheio de malvadeza, enquanto vida teve.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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