Obrigado, meu amigo e meu irmão
Redação DM
Publicado em 20 de janeiro de 2018 às 23:24 | Atualizado há 7 anos
Ele era diferenciado mesmo.
Desde pequeno, além das traquinagens próprias das crianças ele tinha umas muito especiais e muito próprias.
Meu pai, desembestado no mundo, coitado, numa luta permanente e terrível para manter a casa e com as barreiras do analfabetismo ( ele se vangloriava de haver estudado. Sim, tivera três dias de aulas, em toda sua vida! ), fazia o que lhe aparecia para fazer à frente, desde que rendesse algo.
Por isto foi vendedor de doces na rua, foi juquireiro, tropeiro, garimpeiro, castanheiro, soldado, até que, no fim, pode ser arrendatário de terras de castanhas, no Pará.
Demorava meses para vir pra casa e, vindo, não passava mais do que uma semana, até ter que partir para uma nova aventura em busca de meios de sustento da família.
Meu irmão mais velho acompanhava o pai.
Minha mãe, que por muito tempo fora pai e mãe, agora não mais podia exercer este papel. Não depois de haver sofrido uma espécie de derrame que lhe roubou de todas as funções cinquenta por cento de suas habilidades.
Assim, ficamos eu e minha irmã mais velha com as incumbências de pai e mãe na casa. Tínhamos dois irmãos mais novos para olhar. Um era aquele a que agora me refiro.
Não gostava de estudar.
E, quanto a isto, não havia dúvidas. A muito custo completou o curso primário e não quis fazer o ginasial de jeito nenhum.
Preocupados, eu e minha irmã conseguimos no SESI matriculá-lo num curso técnico de mecânica de automóveis.
Ficamos entusiasmados, porque ele aceitara e todo santo dia saía de casa para a Escola.
Ao final do ano, todavia, veio a decepção. Perdera mais da metade das aulas, as teóricas. Conversando com professores, a informação foi a de que as aulas práticas eram assistidas com o maior fervor e participação efetiva. Adorava ver e manusear as peças que estavam dos motores de carros, mas as aulas teóricas eram sistematicamente substituídas por pescarias que fazia com um amigo adolescente como ele, na casa de quem ficavam os materiais da pesca. Por isto nunca sabíamos de nada, pois saía de casa sem qualquer indício que denunciasse que iria para outro rumo que não fosse o seu curso técnico.
Alma bondosa, gostava muito de crianças e com elas se dava muito bem.
Ingênuo, facilmente se enrolava na lábia dos mais espertos.
Quando ficou definido que não iria estudar, meu pai resolveu levá-lo para aprender a atividade extrativa de castanha do Pará com a qual trabalhava já há alguns anos.
Lembro-me como se fosse ontem, quando o mesmo se aproximou de mim e pediu:
Titio ( era como me chamava, pois desde pequeno misturava minha figura e a da irmã mais velha com a do tio e da tia, pois fazíamos o papel de pai e mãe mas éramos irmãos ), o senhor podia me emprestar aquela blusa de frio do senhor. Logo que eu voltar eu lhe devolvo.
Eu havia comprado aquela blusa de lã com muita dificuldade. E só usava aos domingos, para ir à Igreja…
No Pará, na primeira viagem que ele fez de barco para um castanhal, fiquei sem a camisa.
É que o pessoal que trabalha nestes barcos o faz só de calção e com um grande chapéu de palha na cabeça. À noite, porém, a situação muda. Vem o frio e aqueles homens, sem nada, se agasalham como podem.
Foi aí que o coração do mano não aguentou. Tirou a camisa com que se vestia e ofereceu para o barqueiro.
Meses depois, quando de sua volta, a justificativa foi singela:
– Ah…titio, o homem estava passando muito frio…
Não pude dizer nada, eu que sabia de seu desapego das coisas materiais e de sua extrema compaixão para com os mais necessitados…
Figura humana notável, foi embora muito cedo de nosso meio, aos dezenove anos, vítima da brutalidade humana, pelas mãos de um desconhecido.
Foi um tempo terrível esse pelo qual tive que passar, mas passou.
Lembro-me do seu sorriso largo, de seu jeito afável com todos e especialmente com as crianças.
Recordo-me das brincadeiras, da sinceridade de sua postura, mesmo quando contrariava a família e os mais velhos.
Ficaram as suas lições, tantos nos seus erros quanto nos acertos e aquele sentimento de falta, aquele vazio, aquela vontade de que aconteça de novo, de que se repita a cena, de que a página volte atrás, tudo, porém, impossível.
Mas a lembrança permanece, o ânimo para continuar é refortalecido, firmado no seu sorriso e no seu jeito descompromissado de ser…
Obrigado, Antônio Francisco Lima Filho, o Toinho, cabelo ruim e cabeça boa, jeito desengonçado de andar mas coração firme no amor a todos.
Obrigado, meu amigo e meu irmão.
(Getulio Targino Lima: Advogado, professor emérito pela UFG, jornalista, escritor, membro da ANE e da AGL. E-mail: gtargino@hotmail.com)