Opinião

Observações sobre o noticiário

Diário da Manhã

Publicado em 28 de janeiro de 2016 às 22:51 | Atualizado há 9 anos

Penso que a sociedade deve ser esclarecida sobre atos e fatos que envolvam  o Direito e a justiça – e só a livre discussão pode evitar a desinformação, o preconceito e a ignorância.

Aprendi com o inesquecível advogado Sobral Pinto: “Sem Direito, sem leis e sem justiça não há sociedade que cresça e se organize.”

Presto, neste artigo, minha modesta contribuição ao debate democrático e ao legado maior do eminente jurista que tenho como referência: sua biografia é uma lição de respeito ao valor da vida na democracia, lutando pelo direito de todos os cidadãos à ampla defesa e ao contraditório, princípios consagrados constitucionalmente.

Quase todos os jornais do Brasil replicaram no noticiário do final de semana a “nota” publicada no site do “Instituto Lula” intitulada “Violência contra Lula: promotor anuncia denúncia sem ouvir defesa”.

O texto de autoria do ‘Instituto Lula’ informa no primeiro parágrafo que “os advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva examinam as medidas que serão tomadas diante da conduta irregular e arbitrária do promotor Cássio Conserino, do Ministério Público de São Paulo”.

No segundo parágrafo a nota afirma o que Lula e seu “Instituto” consideram suposta “conduta irregular e arbitrária” do representante do Ministério Público: “O promotor violou a lei e até o bom senso ao anunciar, pela imprensa, que apresentará denúncia contra o ex-presidente Lula e sua esposa, Marisa Letícia, antes mesmo de ouvi-los. E já antecipou que irá chamá-los a depor apenas para cumprir uma formalidade.”

O terceiro parágrafo traz a argumentação que pretensamente “fundamenta” o texto da assessoria de Lula: “Ao contrário do que acusa o promotor – sem apresentar provas e sem ouvir o contraditório – o ex-presidente Lula e sua esposa jamais ocultaram que esta possui cota de um empreendimento em Guarujá, adquirida da extinta Bancoop e que foi declarada à Receita Federal.”

Este parágrafo repete os “elementos” que o Instituto Lula entende configurarem a tal “conduta irregular e arbitrária” do promotor Cássio Conserino: o Ministério Público não “apresentou provas” nem “ouviu o contraditório” (sic).

Os jornais de maior circulação no Brasil reproduziram estas “informações”. Nenhum dos que pude consultar solicitou ao interessado, o mencionado representante do Ministério Público, sua manifestação sobre a veracidade da “irregularidade” e “arbitrariedade” na sua “conduta”.

Entendo que se faz necessário um esclarecimento sobre um aspecto essencial da legislação brasileira: o que é o princípio do contraditório consagrado em nossa Constituição? Quando – e como – ele se verifica?

Vamos aos fatos desde o início. Tudo começou quando a revista Veja divulgou a informação que o Ministério Público apresentará denúncia – contra o ex-presidente e esposa – por suposta ocultação de propriedade, uma das modalidades do crime de lavagem de dinheiro que tem sua tipificação na L Nº 9.613, de 3 de março de 1998, que “dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previsto neta Lei, cria o Conselho do Controle da Atividade Financeira – Coaf e dá outras providências” e teve a redação de diversos artigos alterada pela Lei 12.683, de 2012.

Não pretendo tratar aqui sobre o mérito da suposta denúncia, do que se refere às suas provas ou à possível inocência dos envolvidos: isso compete exclusivamente ao representante do Ministério Público.

Repito: meu objetivo, diante da informação divulgada pelo “Instituto” e pelo ex-presidente é lançar luzes sobre a suposta “conduta irregular e arbitrária”; a ausência do “contraditório” – pela ausência de oitiva dos possíveis suspeitos pelo Ministério Público antes da denúncia para que contestassem as suspeitas – e sem “apresentar as provas”.

Ora, o que diz, afinal, a lei – o Código de Processo Penal – sobre a apresentação da denúncia? A que está “obrigado” o Ministério Público antes de oferecer denúncia ou queixa-crime? Está a autoridade obrigada a ouvir os possíveis suspeitos? E em quais casos e situações isso ocorre necessariamente?

Meu propósito neste breve artigo é responder tais questões – e assim contribuir para que a população possa compreender a situação sem pré-julgamentos; busco esclarecer – sem “condenar” ou “vitimizar” quem quer que seja.

O texto da lei é cristalino – como costumam dizer os advogados. Está disposto na cabeça do artigo 396 do Código de Processo Penal que “nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”.

Conforme ressaltado por Damázio  de Jesus em Código de Processo Penal anotado, 24ª Edição, essa defesa não se confunde com a defesa preliminar, anterior ao recebimento da acusação, estabelecida em alguns procedimentos como ocorre na Lei nº 9.099/95 (Juizados Especiais), na Lei nº 11.343/06 (Antidrogas) ou na Lei nº 8.038/90 (ação penal de competência originária dos tribunais).

Assim o é porquanto a manifestação da defesa ocorre depois de ser prolatada decisão a implicar o recebimento da denúncia. A rigor, observa-se depois de recebida a denúncia, com a audição da defesa, o contraditório.

É até compreensível o equívoco do leigo que se propõe a interpretar a lei penal. Especialmente porque o conhecimento sobre o momento de recebimento da denúncia ganhou relevância após a edição da Lei 11.719/08, que reformou o Código de Processo Penal.

A leitura de um não especialista poderia levar à suposição que traria referida norma a previsão de dois momentos de recebimento da denúncia – um antes, outro depois da resposta à acusação. Vale reler a transcrição do Código Penal:

“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias

(…)

Art. 399.  Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.”

Provavelmente teria surgido aí a dúvida no “Instituto”: a apresentação da denúncia ocorre antes ou depois da “resposta” à acusação?

O mandamento constitucional não submete o Ministério Público ao “contraditório” antes de apresentar sua denúncia. O contraditório e a apresentação das provas devem acontecer em juízo, ou seja: após o acolhimento da denúncia pelo juiz – o que efetivamente dá início ao processo. É o que diz a lei que instituiu o Processo Penal no Brasil.

Ocorre – e sabem disto os advogados atuantes e os membros do Ministério Público – que dirimindo esta possível controvérsia decidiu acertadamente o Superior Tribunal de Justiça: a denúncia é recebida Antes de o réu ser citado para oferecimento da resposta à acusação.

É depois deste ato – após o recebimento da denúncia – que tem início o mencionado “contraditório”: a manifestação da defesa contraditando a acusação.

Como consequência destas intervenções em ordem sucessiva,  após a resposta da defesa à acusação, apresentada depois do recebimento da denúncia, o juiz poderá inclusive absolver –  ou não – o réu sumariamente.

Para poupar o leitor evito a transcrição desnecessária de decisões da Corte Superior de Justiça dirimindo duvidas e esclarecendo a questão. Faço a citação de um episódio:

Furto (Artigo 155 do Código Penal). Falta de Motivação da Decisão que deu Prosseguimento à Ação Penal. Afastamento das HIipóteses de Absolvição Sumária do Artigo 397 do Código de Processo Penal. Desnecessidade de Motivação Complexa. Possibilidade de Manifestação Judicial Sucinta. Nulidade não Caracterizada. 1. Após a reforma legislativa operada pela Lei 11.719/2008, o momento do recebimento da denúncia se dá, nos termos do artigo 396 do Código de Processo Penal, após o oferecimento da acusação e antes da apresentação de resposta à acusação, seguindo-se o juízo de absolvição sumária do acusado, tal como disposto no artigo 397 do aludido diploma legal. (…) (STJ, HC243687, Rel. Min. Jorge Mussi, p. 23/08/13)

Como é fácil perceber, a importância prática desta deliberação é significativa, já que o recebimento da denúncia é o primeiro marco processual a ser observado na interrupção da prescrição da pretensão punitiva. E como bem sabe quem é do ramo, observar prazos é essencial para o resultado da ação.

Mas, afinal, existem exceções à regra? Em algum caso a defesa é apresentada previamente? Claro que sim. São as situações excepcionais que transcrevi do texto do renomado professor Damásio de Jesus – todas previstas em leis específicas.

Alguns procedimentos especiais preveem uma fase de defesa preliminar antes do próprio recebimento da denúncia: são as hipóteses dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 514, CPP), da Lei de Drogas (art. 54, Lei n. 11.343/06), dos crimes de responsabilidade de prefeitos (art. 2º, I, Decreto-Lei n. 201/67).

Portanto, a conclusão é que no procedimento comum, a denúncia é recebida antes do oferecimento de resposta à acusação; e diante disso a resposta à acusação não tem a mesma natureza jurídica da defesa preliminar, também chamada de “defesa prévia” e que é – nas exceções que mencionei – anterior à própria análise do juiz visando o possível recebimento da denúncia.

Não poderia ser diferente – considerando o princípio que assegura autonomia e independência à atuação ao Ministério Público para o exercício das suas atribuições. Logo, ao apresentar a denúncia o Ministério Público não está obrigado a agir conforme o entendimento da “assessoria” do Instituto Lula, ou às conclusões de um inquérito policial – mas à observância dos pressupostos estabelecidos no Código de Processo Penal.

O inquérito é peça meramente informativa, embora de extrema importância para que o órgão acusatório – o Ministério Público – forme a opinio delicti, evitando, assim, que cidadãos sujeitem-se a um constrangedor processo criminal sem que haja justa causa para tanto; é quando os possíveis indiciados são ouvidos preliminarmente: são recolhidos pela autoridade policial seus “depoimentos”.

Havendo outros elementos de convicção, o inquérito é dispensável e, com mais razão, são dispensáveis alguns atos que nele se inserem, tais como o relatório final e o indiciamento por parte da autoridade policial, desde que as provas já colhidas sejam suficientes para fundamentar a ação penal.

A lei processual penal não subordina o Ministério Público ao chamado “indiciamento” – que é o registro administrativo, feito pela polícia, do nome e dos dados de identificação de alguém que, na opinião da polícia, reúne indícios de ter sido o autor do ato criminoso investigado.

A propósito, o Código de Processo Penal, a lei geral sobre a investigação e o processo criminal, não usa a palavra “indiciamento” em nenhum momento. É usado o termo “indiciado” algumas vezes referindo-ser à pessoa investigada, relativamente a determinado conjunto de indícios.

Habitualmente autoridades policiais, do Poder Judiciário, do Ministério Público e da imprensa supervalorizam o indiciamento: na verdade, sob o ponto de vista do processo penal, esse ato não tem maior significado.

Explico: um cidadão ser indiciado por um determinado crime nada significa quanto à denúncia que o Ministério Público poderá (ou não) oferecer contra ele.

O indiciamento policial não gera obrigatoriamente “processo”; não vincula às suas conclusões o Ministério Público – que pode se assim entender denunciar outra pessoa, ou ninguém; e muito menos vincula ao seu resultado o juiz. Portanto, é possível afirmar que o indiciamento não tem “obrigatoriamente” nenhuma consequência processual.

Somente o “indiciamento” não garante que alguém responderá por algum crime. Quem pode decidir sobre acusar alguém – e por qual crime – é o Ministério Público.

A regra determina que na ação penal só a denúncia apresentada pelo Ministério Público gera a instauração de processo criminal – se recebida pelo juiz. E é com este recebimento da denúncia que o juiz inicia o processo criminal; se o juiz optar por não receber a denúncia, em termos técnicos ainda não haverá “processo”.

Talvez a interpretação do “Instituto” resida na Lei 12.830, de 20 de junho de 2013, editada para “dispor sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”. O indiciamento foi mencionado no artigo 2º, parágrafo 6º ao estabelecer que é privativo do delegado de polícia; que se dará por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato e deverá indicar a autoria, a materialidade do crime e suas circunstâncias.

Ocorre que esta norma legal não alterou a irrelevância processual do indiciamento: não o vincula – como “justa causa” – à decisão do Ministério Público sobre oferecer a denúncia; ou à decisão do juiz para o recebimento da denúncia e ao julgamento do mérito da ação penal.

Penso que está óbvio: se a lei não determina a oitiva dos suspeitos e seu indiciamento, se não subordina a esta “obrigação” o Ministério Público antes da “apresentação” da denúncia, o possível suspeito não pode exigir tal procedimento antes do “recebimento” da denúncia, exceto nos casos mencionados de expressa previsão legal.

Conclusão: o “arbítrio” do Ministério Público para oferecer denúncias quando a seu juízo considere possuir os elementos necessários é institucional, legal, constitucional. O Código de Processo Penal estabelece os requisitos para a denúncia e a queixa-crime (art. 41):

  1. a) a exposição (descrição) do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias.

O fundamento deste requisito é de que o réu irá defender-se dos fatos a ele imputados. A omissão de qualquer circunstância não invalidará a queixa ou a denúncia, podendo ser suprida até a sentença, conforme o art. 569 do CPP.

  1. b) a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo:

O representante do Ministério Público ou o ofendido irá individualizar o acusado, ou seja, identificá-lo.

Admite-se que sejam fornecidos dados físicos, traços característicos ou outras informações, caso não seja possível obter a identidade do acusado.

A correta qualificação do acusado poderá ser feita ou retificada a qualquer tempo, sem que isso retarde o andamento da ação penal (art. 259 do CPP).

  1. c) a classificação do crime:

A correta classificação jurídica do fato (a capitulação legal) não é requisito essencial, pois não vinculará o juiz, que poderá dar ao fato definição jurídica diversa.

  1. d) rol de testemunhas (quando houver):

O representante do Ministério Público (ou o querelante) deverá arrolar as testemunhas na denúncia (ou na queixa, em se tratando de crime de ação penal privada), sob pena de preclusão.

As provas deverão ser apresentadas no momento oportuno do chamado “processo”. E divulgar informações sobre o trabalho que exerce é um direito que só pode ser questionado quando ocorre a imposição judicial do sigilo – o que absolutamente não é o caso.

O que todos nós confiamos – e esperamos – é que nenhuma denúncia seja apresentada sem os elementos e a fundamentação necessária; que nenhum ilícito fique sem punição; que nenhuma reputação seja injustamente ofendida; que nenhuma informação deturpada ou interpretação equivocada alcance a respeitabilidade e a credibilidade do Ministério Público, instituição essencial para a garantia do direito e da Justiça; e que os princípios constitucionais da ampla defesa e do exercício do contraditório jamais sejam esquecidos.

 

(Camille Adorno é escritor e advogado)


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