Opinião: Deus me livre de ser professor
Diário da Manhã
Publicado em 6 de dezembro de 2017 às 22:45 | Atualizado há 7 anosEntramos na reta final de mais um ano letivo. Como todo final de ano percebemos um cansaço físico e mental no rosto de cada professor. Cansaço que também é manifesto na face dos nossos educandos. Um dos maiores erros da nossa classe política e nós aceitamos passivamente foi sem dúvida associar quantidade à qualidade, especialmente na educação. Duzentos dias letivos, no atual modelo educacional é estafante.
A sala de aula superlotada, desinteressante, a rotina massacrante, a burocracia escolar, tudo isso contribui para esse fenômeno de fim de ano nas escolas, ninguém admite, mas todos querem mesmo é que o ano letivo acabe, e que venha o merecido e breve recesso escolar. Contudo por que isso afinal? Quais fatores contribuem para essa falta de vontade de potência nessa reta final, quando na teoria seria o apogeu de todo trabalho desenvolvido ao longo do ano?
A raiz etimológica da palavra trabalho pode nos ajudar a entender esse fenômeno. A palavra trabalho vem do latim tripalium, termo formado pela junção dos elementos tri, que significa “três”, e palum, que quer dizer “madeira”. Tripalium era o nome de um instrumento de tortura constituído de três estacas de madeira bastante afiadas e que era comum em tempos remotos na região europeia. Desse modo, originalmente, “trabalhar” significava “ser torturado”. No sentido original, os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos eram os que sofriam as torturas no tripalium. Assim, quem “trabalhava”, naquele tempo, eram as pessoas destituídas de posses.
A ideia de trabalhar como ser torturado passou a dar entendimento não só ao fato de tortura em si, mas também, por extensão, às atividades físicas produtivas realizadas pelos trabalhadores em geral: camponeses, artesãos, agricultores, pedreiros etc. A partir do latim, o termo passou para o francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”. Com o passar do tempo, o sentido da palavra passou a significar “fazer uma atividade exaustiva” ou “fazer uma atividade difícil, dura”. Só no século XIV começou a ter o sentido genérico que hoje lhe atribuímos, qual seja, o de “aplicação das forças e faculdades (talentos, habilidades) humanas para alcançar um determinado fim”.
Somos trabalhadores da educação, lidamos com o conhecimento, deveríamos sentirmo-nos torturados, tal qual os antigos escravos, que deram origem a palavra trabalho?
Na perspectiva dos amantes do conhecimento, da sabedoria, aqueles que praticavam o ócio em oposição ao negócio, os filósofos se dividiam em dois grupos: os empiristas e os racionalistas. Os empiristas propunham que nosso conhecimento advinha das experiências, nossa mente seria como uma folha em branco que seria preenchida por essas experiências, formando rabiscos. Esses rabiscos estudados com cuidado daria origem à ciência. Já os racionalistas acreditam na razão e defendiam o postulado de que o conhecimento advinha da capacidade intelectual dos seres e não das experiências. Tanto os empiristas quando os racionalistas divergiram o tempo todo. Emmanuel Kant propôs a junção de ambos por meio da ideia de sujeito transcendental, logo esse sujeito possui a possibilidade do conhecimento, unindo à razão a experiência.
Por meio da experiência e da razão consigo fazer associações para compreender esse fenômeno de desgaste ligado à carreira docente. Sentimo-nos cansado ao final desse ciclo de seis meses porque, ao invés da escola ser um local ligado a satisfação profissional, ela torna-se um lugar penoso e de sofrimento. Isso evidente que não se dá de maneira explicita, pelo contrário o ser humano sublima esse sofrer em situações tais que esse padecimento passa até mesmo despercebido, mas que se reflete nos feriados ou nos fins de semana, quando o professor passa (quando a rotina da casa permite, quando não tem provas para corrigir, planos de aulas para fazer…) o dia todo apenas vegetando da cama para o sofá da sala, do sofá da sala para a cama.
O professor António Nóvoa nos fala de uma escola transbordante, porque é uma escola que assume para si, inúmeras responsabilidades. Desde a escovação dos dentes, passando pela higiene pessoal do aluno, os ensinamentos da base primária da educação, a nutrição, a assistência social e ainda ensinar a ler, escrever, interpretar e ser crítico (ufa, fiquei cansado apenas de escrever) O professor está cansado porque assume inúmeras tarefas que fogem a sua especialidade que seria de promoção do conhecimento de base transcendental na perspectiva kantiana.
Mas o que fazer para mudar essa realidade? Assuma as rédeas da sua profissão, não se torne escravo do trabalho. Transgrida o tempo todo, na Gaia Ciência, Nietzsche evidência “Até hoje, foram os espíritos mais fortes e os mais malignos que obrigaram a humanidade a fazer mais progressos: inflamaram constantemente as paixões adormecidas- todas as sociedades policiadas as adormecem- eles despertaram constantemente o espírito de comparação e de contradição, o gosto pelo novo, pelo arriscado, pelo inexperimentado; obrigaram o homem a contrapor opiniões a opiniões, modelos a modelos”. Precisamos transgredir para destruir os muros e as paredes dessa velha nova escola. Nos professores devemos exercer nossa autonomia, entendida como a capacidade de governar-se pelos próprios meios. A autonomia segundo Kant consiste na capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível.
Não sejamos heterônomos, não caia no enfadonho discurso de fazer tudo isso pela salvação da sociedade. Essa é minha filosofia. A escola não é a deusa Panacea, escola deveria estar mais para Minerva. Pois caso contrário continuares a ser a Sísifo.
(Edergenio Vieira, poeta e professor na Rede Municipal de Ensino de Anápolis. Instagram Edergenio)