Opinião: O declínio do caráter e o fim do homem cordial brasileiro
Redação DM
Publicado em 6 de março de 2018 às 21:49 | Atualizado há 7 anosCada virtude tem sua época. Cada povo tem seus defeitos e virtudes.A tragédia social e moral acontece quando as virtudes desaparecem em um povo, e nele surgem defeitos monstruosos.
Quando vizinhos de casa, de rua, de apartamento, colegas de trabalho – de chácara ou de fazenda – ou conhecidos mal se cumprimenta, com gentileza e respeito, no elevador,na padaria, no supermercado, onde quer se que se encontrem; quando olhos de vizinhos de casa, em bairros, comunidades, cidades interioranas,médias ou pequenas;
Quando deixam de ser proteção amiga e desinteressada uns para os outros, contra ladrões, malfeitores, descuidistas,como acontecia em dias passados,não muito remotos, zelando por sua segurança e bem-estar, deu-se uma queda sem retorno, no padrão de gentileza e convívio humano que se convencionou existir, no Brasil.
Nosso país foi até há pouco tempo um país conhecido em todo o mundo pela gentileza e cordialidade de sua gente, por sua alegria vital, sua camaradagem e solidariedade,não só nas festas e momentos felizes, mas também nas horas difíceis.
A bailarina Isadora Duncan,bem como o psicólogo e terapeuta Pierre Weill, ficaram impressionados com a abertura e facilidade que os brasileiros têm ou tinham – para o abraço.Abraçam-se com facilidade, a qualquer reencontro, por qualquer motivo – muitas vezes quando pessoas são apresentadas umas às outras.
Coisa inviável e impensável de se ver, em certos países europeus, ou talvez em toda a Europa – ou mesmo nos Estados Unidos, ou na Austrália,onde prevalecem nos costumes e no caráter e alma dos povos uma certa frieza, um distanciamento de gestos, uma secura formal de palavras, longe dos gestos e palavras calorosos, linguagem revelando consideração e afeto – sendo isto fingido, ou verdadeiro.
Isto importa, mas não muito, considerando-se os dias vertiginosos, o time is Money, a pressa de viver, a ânsia de competir, o medo de se revelar no íntimo – urgência de morrer e anseio de adoecer, em que mergulhamos.
Lamentavelmente, toda essa fraternidade, toda essa gentileza, todo esse jeito afetuoso meio que compartilhado e coletivo, em todas as classes sociais, na vida popular de ricos, pobres e remediados, está se perdendo, ou já se perdeu para sempre. Não se vê mais isto em muitos lugares.Por sinal, quase não é visto mais, em lugar algum.
Aqui, em São Bento do Norte/Caiçara do norte, um lugarejo beira-mar, de poucas almas – quase aldeias de pescadores, na alta esquina do Brasil, são incontáveis os relatos de furtos e roubos cometidos ora por vizinhos, ora contando com sua cumplicidade ou indiferença. Isto na zona urbana quando na zona rural.
Manoel, um empregado de fazenda, uma pessoa afável e trabalhadora, de vez em quando faz uns serviços aqui para a gente, na Pousada. Já não o recebemos como prestador de serviços. É recebido e tratado como amigo. Ele conta que no sítio onde é capataz, vizinho a um assentamento de ex-sem terra, teve sua casa arrombada, dela tendo sido levados sua arma, uma carabina, que tinha para sua segurança, dada a intranqüilidade em que vivem todos os moradores da região, e outras coisas de seu uso.
Por previdência ele saiu na “boca da noite”, meio que furtivo, para não dar na vista, aos vizinhos, de que estava ausentando-se. Foram apenas algumas horas.Talvez já o estivessem espiando, não para protegê-lo, mas para arrombar sua porta, e levar seus pertences.
Em um sítio próxima àquela onde vive há mais de quinze anos, como empregado, 25 porcas, de raça, de uma criação, foram levadas – mais duas dezenas de ovelhas, a arma do proprietário, e todas as suas ferramentas.Um prejuízo de mais de trinta mil reais, para um pequeno criador.
O roubo aconteceu quando de uma rara e rápida saída sua. Tal como sucedeu ao Manoel, mal esperavam sua ausência, por uma noite, apenas. Levaram um caminhão cheio, e deixaram a desolação e o desespero.
A pergunta a fazer é: que segurança se tem para trabalhar, produzir, empreender, em um mundo destes, em que apropriam-se, com astúcia ou violência, dos frutos do duro trabalho de outros, sem a menor piedade ou consideração? Que aviltamento ou corrosão de caráter teria se desencadeado sobre nosso povo, a ponto de torná-lo tão insensível e descarado, tão indiferente ao outro, tão causador de prejuízo e desastre, pensando somente em seu proveito próprio?
O que fazer, que esperança acalentar, na existência ainda possível, de um mínimo padrão de honestidade, ou de civilidade ou humanidade, que parece ter sido perdido para sempre? Que intervenção federal – onde quer que aconteça – que operações policiais, envolvendo tropas do exército, Guarda Nacional, e o que mais exista, em aparato de segurança,. Pode fazer com que as pessoas deixem de temer ou desconfiar umas das outras?De que humanidade há de se falar, de qual extinta dignidade e direitos inalienáveis da pessoa humana, quando se sabe que o animal humano transformou-se em lobo ameaçador para si próprio?
(Brasigóis Felício, escritor e jornalista. Integra entidades culturais como Academia Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)