(Opinião) O emparedamento do Supremo: tem razão ou não?
Diário da Manhã
Publicado em 27 de fevereiro de 2018 às 23:41 | Atualizado há 7 anosComo o próprio nome sugere, o emparedamento consiste em, basicamente, enclausurar pessoas vivas e foi empregado para os mais diversos fins ao longo da História. Existem inúmeros registros do uso desse método cruel e doloroso em várias partes do mundo como forma de punição e até para a realização de sacrifícios humanos.
Ministros do STF recentemente fizeram chegar à Procuradoria-Geral da República, uma advertência: o Judiciário não vai mais tolerar manobras do Ministério Público Federal (MPF) destinadas a constranger juízes, num típico emparedamento para mantê-lo ergastulado e sem movimentos. citando como exemplos atuais o arquivamento do inquérito contra o senador Romero Jucá e a suspensão do indulto de Natal.
No primeiro caso, de Jucá, o MPF através de uma acusação inconsistente, sem definição de culpa, indício de autoria ou materialidade criminosa, vendeu à opinião pública a falsa ideia de que o STF acumpliciou-se com um criminoso para poupá-lo, quando a realidade foi que a prescrição se deu por causa de inúmeros pedidos de diligências do próprio MPF, titular absoluto da ação penal. Não por acaso, o inquérito já estava há um ano na PGR quando prescreveu. E no segundo caso – o indulto – a falsa notícia foi a de que o decreto libertaria os acusados da Lava Jato.
Foram estas duas das falsas notícias que, neste início de ano, colocaram o STF no pelourinho da imprensa nacional e das desinformadas redes sociais. O ministro Gilmar Mendes, alvo principal das últimas agressões, com várias históricas “gilmarzadas”, vê por trás do fenômeno “uma onda de irresponsabilidade e falso moralismo que é, acima de tudo, desonesta”, complementando que a difusão das mentiras “leva a população a acreditar que o Judiciário protege ricos e poderosos, enquanto os acusadores é que defendem o interesse público – o que compromete a imagem da Justiça”.
A partir de quando ele anunciou que poderia rever seu voto em relação à antecipação da execução da pena em condenações confirmadas pela segunda instância, Gilmar Mendes passou a ser atacado diariamente por jornalistas e por membros do Ministério Público, principalmente da força-tarefa da Lava Jato, tornando mais intensos os ataques àquele ministro.
Há pouco mais de uma semana, o procurador da República Carlos Fernando de Lima permitiu-se esculachar em público o ministro Ricardo Lewandowski, quando este, em artigo em que defendia. uma cláusula pétrea da Constituição, onde se determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória”, o procurador afirmou que isso não passa de bobagem de pseudojuristas que defendem a impunidade de poderosos.
Esses tipos de agressão, em geral, emergem de uma onda de falso moralismo que, ao longo da história e em todo o mundo, varre países em crise de identidade. Mas a elas se somam críticas mais profundas, anteriores à era da Lava Jato.
Conceituados advogados falaram sobre o assunto, não sendo unânimes. O Brasil vive um acirramento de opiniões, numa pretensa (e falsa) luta do bem contra o mal. Ministros que não buscam os holofotes da mídia nem “jogam para a torcida”, que preferem seguir a Constituição ao clamor público, são atacados.
As críticas a Gilmar Mendes têm duas origens: uma, pelo fato de ele cumprir a Constituição no que toca às garantias e direitos fundamentais; a outra é a dificuldade de se comunicar, o que irrita os justiceiros. Parte da imprensa busca claramente o embate, fazendo com que não se dobre ao movimento populista, sendo tachado como defensor da corrupção. Mas com o passar do tempo os oportunistas e “paladinos da justiça” fatalmente serão identificados como os aproveitadores, até porque é falsa essa noção de que o Brasil progride no combate ao crime e à corrupção. Se assim não fosse real, a segurança pública já teria contido a criminalidade no Rio de Janeiro. Qualquer pessoa, de qualquer profissão, critica decisões judiciais com toda a convicção do mundo, o que é um desrespeito derivado da ignorância. O avanço é lento, mas é inexorável. O país precisa muito de um pouco mais de civilidade. O ruim disso é que as pessoas passam a acreditar em coisas que não existem. Para piorar, o Supremo muda toda hora de entendimento, o que cria instabilidade e insegurança jurídica.
Há fatores que são conjunturais, contextualizados, subjetivos. Há uma falta de liderança no Judiciário, no momento em que a Presidência do país está fragilizada. O Executivo, que normalmente é forte, não é o caso agora. E com o Legislativo submisso, pressionado, encurralado, o Judiciário se agigantou, sem que o STF estivesse preparado para isso. Nota-se a falta de sentimento de colegialidade e não há um líder que una a instituição. A composição também é um problema, pois não obedeceu a nenhum critério, sem identidade entre os seus onze integrantes, que são um arquipélago com 11 ilhas sem relação uma com a outra. Alguns problemas são de ordem objetiva, especialmente a dualidade Corte Constitucional/Corte recursal. O STF funciona ora como corte constitucional, ora como tribunal de recurso, ora como juízo de primeiro grau.
O Legislativo e o Executivo, ambos acocorados, querem inutilmente sair do dessa situação, e o STF ficou indeciso e se autoflagela por dramas que não são exatamente seus: uma parcela dos juízes insiste em defender privilégios sem perceber o momento em que estamos; outra quer ser notícia chamando atenção para si, fazendo com que as decisões atraiam a ira da direita e da esquerda, levando os ataques não só ao STF, mas ao Judiciário como um todo.
A partir do momento que a Suprema Corte passa a ser protagonista de decisões políticas, de impacto nacional, estará sujeita a críticas jurídicas e políticas. O STF tem sido chamado a tomar decisões que seriam do Congresso e do Executivo, expondo-se a um debate político para o qual a instituição não está preparada, e os próprios membros do Judiciário assumem um protagonismo que expõe ainda mais a classe dos juízes, surgindo práticas questionáveis, como o auxílio-moradia, que acabam por submetê-los ao debate público. E, ao assumir um protagonismo ético no combate à corrupção, como é o caso do juiz Moro, acaba por ser objeto das críticas decorrentes de práticas que são contraditórias a esse protagonismo.
Como o STF assumiu um caráter notadamente político, nas ausências do Legislativo e com as brechas que a Justiça tem, acaba entrando em campo para atuar nesses vácuos e acaba por legislar e, a pretexto disso, ao assumir um papel moralista, acabou virando caixa de ressonância da sociedade. Se existe um emparedamento do Supremo, não lhe faltam motivos: ministros: falam fora dos autos, como querem, na hora que querem, do jeito que querem, voltando atrás com uma facilidade enorme, segundo a conveniência e a circunstância.
O jusfilósofo norte-americano Duncan Kennedy explicou como ninguém que a Suprema Corte americana é, por excelência, o órgão da democracia daquele país que resolve problemas políticos por meio do Direito, usando a técnica jurídica como pretexto. No Brasil, que passa por uma crise em que a classe política encontra-se vulnerável como nunca antes na história, a sociedade quer vingança, mas o STF tem a função de impor os limites constitucionais desse combate. Os ataques aos ministros são previsíveis, pois a plateia sempre vaia o juiz que interrompe a luta para fazer cumprir a regra.
O Judiciário dá a impressão de que não está conseguindo cumprir o papel de protagonista das grandes questões nacionais que este momento histórico lhe reservou. A inoperância no Executivo e a passividade do Legislativo sobram para o Judiciário. Mas ele não tem conseguido dar conta nem mesmo de sua atribuição mais primária: prover justiça célere e eficaz a todos.
Responsabilizar o Judiciário, e especialmente o STF, pelos males do país não é a solução, pois precisamos encontrar um rumo para que cada um e cada instituição possa cumprir o seu papel e as cobranças sejam feitas a quem de direito. Mas não devemos ignorar que ele deixou de lado seu papel de garantidor da Constituição e passou a buscar mais protagonismo. Isso tudo movido por uma imprensa cada vez mais ávida por notícias e condenações e, de outra banda, de ministros que buscam as telas de TV, mormente depois que as sessões passaram a ser ao vivo.
A tensão política caiu sobre a cabeça do STF, passando a ser motivo de crítica de ampla repercussão. É como, mal comparando com o árbitro de futebol: quando ele apita uma partida entre times ditos pequenos, não há maiores problemas. Mas num Flamengo x Fluminense ou Corínthians x Palmeiras, as discussões sobre acerto ou erro são intermináveis.
É assim neste nosso Brasil varonil: o cidadão comum é tratado como partida de time de várzea, e os políticos e poderosos, como clássicos com estádio cheio.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])