Brasil

OS ACASOS E GESTOS DE PIO VARGAS

Redação DM

Publicado em 27 de novembro de 2016 às 00:56 | Atualizado há 8 meses

“Sua poesia é densa e trágica, própria de quem traz pela vida uma agonia congênita, irremediável, desenganada, de quem chama para si as cólicas do mundo e lhes concede uma roupagem de alto requinte.”

 

EDIVAL LOURENÇO

Presidente da União Brasileira de Letras – GO

 

A MULHER QUE QUERO

Eu quero uma mulher de aço

que seja leve como a pena,

cujo sorriso seja um laço

a me prender como um poema.

Eu quero uma mulher madura

a me guiar durante o dia,

quando for noite ser vadia

a me domar sem armadura

e a me tomar como num sonho,

uma mulher que seja a lua

dentro do sol em que me ponho.

Eu quero uma mulher de ferro

com um aplauso pra quando acerto

e um perdão pra quando erro,

como alguém que seja o brilho

dentro do escuro em que me encerro.

Uma mulher que seja plena

uma amante de verdade

que seja motivo de lembrança

e um intervalo na saudade

que, diurna, me cuida,

mas que, noturna me invade.

Eu quero uma mulher-mãe

que seja vinho, cerveja,

refrigerante, champanhe,

que me entenda se viajo

e se fico me acompanhe.

Eu quero uma mulher toda

que me edifique como homem

e algo depois me exploda.

 

OS SONS DO OFÍCIO

OS SONS DO OFÍCIO

É porque recolho o vário

no aviário das vértebras

e me há um silo de células

e me há um quase-aquário,

que o poema se me chega,

estuário.

Que me importa

a sina jugular das fases,

a vida conjugal das frases

e o semblante cínico

das fezes,

se não faço poemas

como quem defende teses.

Faço poemas

para que passem os dias

e pascem os rebanhos

e os oceanos pasmem

ante o naufrágio

de todas as datas

no calendário-lanho.

Ou seja, faço-os

como quem viceja

os laços do arremesso

como quem vislumbra

silêncio nos entulhos

e aprendeu a estrutura ideal

para montar barulhos

sob a língua mais banal.

Faço-os

como quem lambe oásis no planalto,

deixado pelas bases

de um simples sobressalto.

É como se o ego

coubesse inteiro

na determinação de um prego

que me fixa exílios sob a carne

mas que também aciona

os gatilhos do alarme.

 

VAGA LITÚRGICA

1

O volume da chuva

é que decifra

como no corpo eflúvio

é âmbar a dúvida

 

A porta que mais vence

é a que aberta permanece

e o corpo que mais sente

é nem sempre o que adoece

 

2

Que morte é natural

senão a que é sem leito

se nem só por sinal

traduz-se o que foi feito

 

O que por dentro queima

e teima em prosseguir

o fôlego-fátuo que anuncia

cenas do óbito a seguir

 

3

Vai mais longe

quem divaga

além de si aquém de se

a certeza que mais propaga

é a de quem menos disse

 

Nenhum lugar pleno existe

a menos que a invenção o faça:

o perdão é de quem insiste

no pecado não na graça.

 

DESPERTÁCULO

DESPERTÁCULO

Estou pronto

para a guerra que encontro

quando acordo:

botei vigia nos sentidos

e iludi com comprimidos

outros seres a meu bordo.

Abandonei o vício

de estar sempre

a soletrar ruínas,

dei liberdade a meus detentos

minha pressa diluiu nos passos lentos

e rasguei

meu calendário de rotinas.

Inverti a ordem.

Já não saio por aí

a devorar compromissos,

tomei posse no governo de mi mesmo

e derrotei os meus omissos.

Venci a batalhas

de ter que estar sempre por perto,

às vezes voo para dentro

do meu sonho a céu aberto.

Estou pronto:

eu já concordo

com a guerra que encontro

quando acordo.

 

SUCESSÃO

SUCESSÃO

Depois que eu voltar

de dentro das molduras

apago os meus retratos

invento outras figuras

 

convoco os meus fantasmas

convido mil demônios

e dou posse a todos eles

no governo dos neurônios.

 

CAUSA COM SEQUENCIA

CAUSA COM SEQÜENCIA

O que intriga

é o musgo na palavra

o cárcere nas rugas

o triunfo do costume

e a carne no enigma.

 

O que reprime

é o músculo das horas

o ácido nos olhos

e o escuro gemido

de um labirinto em vime.

 

O que massacra

é o ofício das algemas

o leme das espadas

e a hipocrisia lúdica

de uma música sacra.

 

O que dói

não é a cinza de um riso

mas o conflito insolúvel

entre abismo e paraíso.

 

A página Oficina Poética, criada e organizada pela escritora e acadêmica Elizabeth Abreu Caldeira Brito, é publicada aos domingos no Diário da Manhã.

Esta é a 249ª edição (desde 08/01/2012). [email protected]


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