Os covardes e a morte do Direito
Redação DM
Publicado em 10 de janeiro de 2018 às 22:35 | Atualizado há 8 anos
Li, no fim de 2002 ou na abertura de 2003, a preciosa antologia de crônicas denominada “Deste Mundo e do Outro” ,do genial Saramago. Uma delas se intitula “Salta, cobarde!”(assim mesmo, cobarde no lugar de covarde, ambas corretas, a exemplo de travesseiro e trabesseiro); a outra, “O Direito e os sinos”.
Então ele nos conta que em uma cidade chamada Cassel, na Alemanha de consagrados filósofos, escritores, artistas(berço de Martinho Lutero e da Reforma, acrescento), morava um moço – tinha apenas 19 anos de idade – que matar-se decidira. Subiu no reservatório de água, de 32 metros de altura, para se jogar nos braços da morte( ou do que se convencionou adjetivar de morte). Em minha opinião, o suicídio é um gesto de coragem e medo, simultaneamente.
“Juntaram-se dezenas de pessoas. Bombeiros e policiais tentaram convencê-lo a descer. Uma rapariga sua conhecida (amiga, namorada?) passou por ali por acaso, gritou com os que gritavam: ‘Não faça isso, Jürgen! Desce!’”. Na dúvida ficou o rapaz. Perecer ou continuar por aqui. Aceitou cigarro que lhe ofereceu um bombeiro. Que alívio! Não saltará, disseram muitos. Sem pressa, iniciou a descida. Sim, que alívio! Mas a perversidade se manifestou. Brados de zombaria, apupos, injúrias se ouviram do meio do público. “Salta, cobarde!” Salta, cobarde!”. E cuspiam insultos ao pobre garoto de apenas 19 janeiros de idade. “Salta, covarde!”, “Salta, covarde!”, clamavam os canalhas.
Jürgen recomeça a subir os degraus. Lá embaixo, a massa estúpida, torpe, cruel anseia vê-lo soltar-se. Na opinião daqueles brutos, a indecisão entre se matar ou renovar esperança é cobardia. Os bombeiros armaram uma rede para, obviamente, ampará-lo. E ele se atira e cai nessa rede. Caiu nessa rede, mas morreu. Morreu porque muito se machucara.
Saramago prossegue: “Neste planeta terra, que os homens habitam, há horas de felicidades, sorrisos, amor, alguma beleza, flores para todos os gostos. E há os monstros…Têm um lar, família, amigos, uma vida normal. São civilizados. Mas lá vem um dia que gritam: “Salta, cobarde!”. Não mataram com as mãos, mas com os gritos “Salta, cobarde!” E conclui: “Depois vão jantar, dormem em boa paz, defendidos pela lei e defensores dela. E beijam os filhos”. Acrescento: assim agem os linchadores que lincham com as mãos e ou com as palavras sob o estímulo das massas, do ambiente, dos tabus. Assim fizeram com Jesus: “Crucifique-o!”, e os pilatos, covardemente, se dobram. Às favas a justiça, a verdade, as leis, o Direito.
A história expressa na outra crônica( “O Direito e os sinos”) cumprira-se no século XVI, em lugarejo vizinho de Florença. Viam-se seus moradores nos seus afazeres quando, “de repente, começa a tocar o sino da igreja. A finados. Geral surpresa, pois não havia na aldeia ninguém de quem se esperasse o passamento. Saem as comadres à rua, juntam-se as crianças, largam os homens as lavouras e todos se reúnem no adro a saber a novidade”. Quem morrera? Calou-se o sino e à porta da igreja surgiu o camponês que se fizera sineiro e deixou todos espantados ao dizer que badalara a finados “porque o Direito morreu”.
Não se bate mais o bronze, como se batia há muitos anos no interior do Brasil e de outros países, a anunciar a morte de fulano ou de beltrano. No Brasil, não foi hoje, morreu o Direito. Foram-se, nos últimos tempos, as garantias individuais. Judiciário manda no Brasil sob a falácia do moralismo. Defender os Direitos Humanos é “defender bandidos”. Provas se dispensam. Afinal, somos um país “cristão”. Que Deus tenha misericórdia deste país.
(Filadelfo Borges de Lima. filadelfoborgesdeli[email protected])