Os doidinhos da minha rua
Redação DM
Publicado em 18 de janeiro de 2018 às 23:25 | Atualizado há 7 anos“Toda rua tem um louco/que os outros doidos sabem quem é/”
Paulo Leminsky
A rua onde eu moro não passaria incólume por uma blitz fiscalizadora da unidade móvel cuidadora de doidões e doidinhos de todo tipo.
Bom ou ruim que não é a única. Não há rua em cidade alguma que não tenha os seus louquinhos.
O lugar onde estou agora também não.Gente daqui mesmo comenta, rindo: quem não é doido nessa cidade está treinando para ficar.
Passando a unidade de saúde mental por minha rua, onde moro, atualmente, em Goiânia, e em todas as muitas outras onde já residi, sairia lotada de pacientes.
Precisaria-se de mais de uma.Malaspena que nenhum dos doidinhos dessas ruas o é ao ponto de rasgar dinheiro, de comer meleca ou atirar pedras nos passantes.
Cada um tem lá o seu ponto fora da curva; ou a ferida narcísica que, uma vez sendo tocada, perdem o frágil equilíbrio com que circulam, em meio aos demais normóticos da cidade vertiginosa.
Tinha razão o doutor psi Simão Bacamarte, personagem da novela O alienista,de Machado de Assis: o mundo é uma vasta Casa Verde.
Malaspena que em muitos dos descompensados por natureza sua própria mente, ou o afeto e cuidados da família no seu entorno têm o poder de amenizar suas quedas no desequilíbrio.
Também é dado aos desafinados de ocasião (ou de plantão) dar vazão às suas turbulências e ruídos mentais.
A natureza não convive com o vácuo.
Sempre que um hábito, um vício ou ofício são deixados, sobrepõe-se a tendência a serem substituídos por outros – geralmente do mesmo naipe, do mesmo nicho, ou pertencente ao mesmo esguicho.
Discípulo de um filósofo pré-socrático certa vez fez-lhe uma pergunta: “Mestre, o que é a verdade?” A resposta foi lacônica: “A verdade não existe.E se existisse, seria incomunicável”.
Assim sendo, cada um deve contentar-se em seguir como puder a suas próprias ilusões.
A grande ilusão dos que fazem uso de drogas psicodélias e psico-ativas visando alcançar a Super mente está em que, pelo uso mesmo de entorpecentes que, naturalmente, entorpecem mais do que iluminam, tem-se a diminuição ou obstrução das funções da mente comum.
Sem a qual não teriam sequer desejos de ter lampejos de mente superior que possa existir. Sem passar pelo começo da escada não se pode alcançar os andares superiores.
Espirais de pensamentos nos chegam de fora. Não tomamos os pensamentos como nossos. Muitos não são mesmo, porém a maioria é produzida por nossas próprias obsessões.
Por isto não conseguimos nos livrar deles.
Partindo-se da premissa de que vivemos quase que o tempo todo tomados por pensamentos que não são nossos, ou de pensamentos que nós mesmos produzimos, em modo piloto automático, não é legítimo bem verdadeiro dizer-se que alguém seja normal.
Estar habitados por estes feixes de palavras e lembranças (tempo e memória são, em essência, isto) não constitui apenas o que psicólogos e psiquiatras chamam de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
Trata-se, na maioria dos casos, de um impulso para o viver deslocados do Agora, desvinculados da centralidade do Eu – é quando nos encontramos em estado de identificação com memórias, sensações, lembranças – a que nos apegamos.
Se identificação significa estar perdidos de nós mesmos, na maior parte do tempo estamos perdidos. “Se estivermos tomados pelo medo, podemos ver ameaça em uma cobra em uma corda enrolada, ou algum monstro terrível em um simples cinzeiro”. (P.D. Oupensky)
“A identificação está em toda parte, em cada momento da vida corrente”. Em estado ou situação de identificação, que é a nossa condição habitual, não podemos compreender a verdade das situações de vida com que nos deparamos, no cotidiano.
Em tal estado de ilusão ou transtorno mental não podemos ajudar ninguém. E menos ainda podemos ajudar a nós mesmos.
(Brasigóis Felício, escritor e jornalista.Ocupa a cadeira 25 da Academia Goiana de Letras)