Opinião

Os equívocos do teólogo Reza Aslan em seu livro “Jesus, o zelota”

Redação DM

Publicado em 14 de janeiro de 2016 às 22:41 | Atualizado há 5 meses

Como vimos no artigo anterior (terça, 12.1.16, em dmdigital.com.br), o cientista da religião Reza Aslan, em seu livro “Zelota, a vida e época de Jesus”, imputa à mensagem de Jesus um conteúdo francamente revolucionário.

Entre outras teses absurdas, Aslan (cujo livro ocupou o 1º lugar no N. York Times  por várias semanas), diz que “Jesus entendeu que a soberania de Deus não poderia ser reestabelecida em Israel (contra os romanos), a não ser pela força”. Aslan citou em sua defesa as passagens bíblicas onde Jesus diz  que “não veio trazer a paz, mas sim a espada”, e também a passagem onde insta os discípulos a “venderem os mantos e comprarem espadas” (estes argumentos foram rebatidos por nós em nosso último artigo).

Vinte anos de estudos acadêmicos (esta é a formação que Aslan diz ter seguido) sobre o Novo Testamento não permitiram que o pesquisador verificasse outras frases de Jesus nos Evangelhos, frases que infirmariam, questionariam, sua tese principal. Por exemplo, aquela frase onde Jesus diz que “quem matar pela espada pela espada perecerá”. Ou então, quando manda “amar os inimigos”, “dar a outra face”, “caminhar dois mil  passos com quem nos solicita mil” (Mateus 5:41), etc. Ou seja, a mensagem do Evangelho é literalmente  oposta àquela defendida por Aslan. Aparentemente, sem entender muito  da mensagem  profunda de Jesus, Aslan situa a luta do messias como uma prosaica e suicida resistência à ocupação romana, comparando-o a muitos outros que morreram na ponta do gládio romano na mesma época e na mesma região. É daí que Aslan retira sua ideia de que a “visão de Jesus era equiparável aos outros desajustados de sua época: bandidos, dezenas de messias autoproclamados e zelotas” (facção judaica sediciosa contra a ocupação romana).

A confusão teológico-política de Aslan é tamanha que ele chega a afirmar que até o “teor oculto” do Sermão da Montanha, as “Bem-Aventuranças” não passa de mais um libelo conotra o ocupação romana. Demonstra-se muito pouca envergadura de espírito o fato de julgar uma das mais belas peças da literatura mundial como um libelo rasteiro contra César.

Aslan, continuando suas diatribes contra a figura do Cristo, infere que o “Reino de Deus” a que Jesus se referia, na verdade, era uma metáfora politicamente correta cujo objetivo seria veicular a propaganda da restauração do Reino Judeu na Palestina, reino do qual, ainda  segundo o “delírio aslâmico”, Jesus queria ocupar o trono.

Um dos argumentos pueris do autor é aquele onde, com base na placa condenatória sobre a cruz (Inri : “Rei dos Judeus”), diz que o único crime imputado a ele teria sido a sedição conspiratória contra o Império Romano.

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Aslan, distorce os fatos bíblicos quando diz que o  nome “messias” tem uma conotação  política (“rei de Israel ) e não religiosa (“salvador”), contrariando vários profetas, inclusive Isaías. Diz que, “secretamente”, o que Jesus albergava no âmago, de fato, era o desejo de ser Rei de Israel. Uma das maneiras de corroborar isto, segundo Aslan, é notar que o próprio Jesus teria escondido, o tanto quanto pôde, que era o Messias. Aslan chega a dizer que Jesus nunca obtemporou, de própria boca, que era ele o Messias. Mais um erro de Aslan, na medida em que isto – dizer-se o Messias – ocorre em várias passagens do Novo Testamento, por exemplo, em João 24:6, onde Jesus revela para sua interlocutora: “Sim, sou eu o Messias.” Como se vê, até em citações textuais, que deveria ser uma “das especialidades científicas” de Aslan, ele se equivoca. Aliás, contradições textuais e históricas são muito comuns na narrativa do pesquisador. Por exemplo, no início do livro afirma categoricamente que os evangelistas erram quando dizem que Jesus pregava em sinagoga de Nazaré. Afirma categoricamente, logo no início do livro, que seria impossível haver uma sinagoga em um lugar minúsculo como Nazaré (lugarejo habitado aproximadamente por 100 famílias, segundo o autor).

No entanto, mais à frente, no livro, Aslan se contradiz: refere que, em muitas ocasiões, as sinagogas antigas de regiões rurais palestínicas eram organizadas, fundadas, em um único cômodo, de uma casa de família, portanto uma casa comum. Ele mesmo reconhece que, nessas circunstâncias, até que seria factível a pregação de Cristo em uma sinagoga de Nazaré, contradizendo-se de sua informação inicial.

Se nos detalhes de somenos importância Aslan se confunde, imagine-se nos mais importantes.

Em vários pontos, Aslan imputa a Jesus e aos evangelistas um trabalho de “mistificação”: Jesus realizaria atos e os evangelistas relatariam atos inventados (a palavra utilizada é essa mesmo) sob medida, ou seja, mistificados, para corroborar o que os profetas do Velho Testamento haviam vaticinado acerca do messias que estaria por vir. P. ex, Jesus teria  montado num burrico justamente para que a profecia do profeta  Zacarias se cumprisse sobre ele: “Dizei à filha de Sião: eis que o teu rei vem a ti, manso e montado sobre um jumento,num burrico, filho de jumenta” (Zacarias 9,9).

Para Aslan, Jesus configuraria uma espécie de “profeta profissional”; diz textualmente que ele teria um “talento” para ser um profeta, e que, como “profissional milagreiro” (mago profissional, “como muitíssimos outros que perambulavam pela região”, cita Aslan), receberia bem melhor do que na carpintaria (também, por mais absurdas, são afirmações de Aslan).

Aliás, para Aslan, ainda em relação ao dinheiro, Jesus não teria interesse apenas em pobres, tendo sido amigo de publicanos, cobradores de impostos, possuidores de vastas herdades, enfim homens de poder e recursos, pessoas que, segundo o autor, teriam tido conspícua participação no financiamento da obra do Evangelho.

O estudioso refere que o papel mágico-messiânico-apocalíptico-revoltoso de Jesus não era novidade na época nem no local. Aslan assegura que Jesus era apenas mais um entre tantos lunáticos, oportunistas, estelionatários, arrivistas,da Antiga Palestina. Postula que as reivindicações de Jesus faziam parte da atmosfera psicológica daquele local e daquele momento. Neste particular, para o pesquisador, Jesus nem original seria em suas “mistificações”. Só esqueceu de dizer que temas de fim de mundo, apocalípticos, messianismo, falso-profetismo, reformas do mundo e dos governos, são disseminados em todos os tempos e em todos os locais. Basta ir, p.ex., a um hospital psiquiátrico, em qualquer lugar do mundo, e em qualquer época, para ver que estão coalhados com esses tipos psicopatológicos. Portanto, Jesus não fazia parte de nenhum grupo palestínico de pseudo-messianismo, pseudo-apocalíptico ou pseudo-revolucionário daquela época específica. Todas essas são estruturas do imaginário (salvação, reforma política e moral, escatologia, fim dos tempos, etc) presentes em todas as épocas e em todas as latitudes.

Aslan, em mais uma de suas invectivas fantasiosas contra a mensagem de Jesus, o Zelota, imputa a este um pró-semitismo fanático: para o autor iraniano (que tinha  pais árabes, provavelmente dotados de forte carga anti-semítica, compreensivelmente) Jesus privilegiava abertamente e exclusivamente os judeus. Para ele, Cristo só se preocupava com os destinos dos companheiros judeus, evitava outras etnias ou seitas (samaritanos, p.ex. ), não tinha interesse em curar pessoas de outra denominação, mandava os discípulos apenas à Casa de Israel. Assistimos aqui mais um equívoco aslânico, pois Jesus, entre muitas outras passagens desmistificadoras, conversou longamente com a mulher samaritana do poço, fez uma de suas parábolas mais famosas – a Parábola do Bom Samaritano – tendo como protagonista  heroico um membro de etnia heterodoxa, curou uma mulher não-judia dizendo-lhe  que a fé dela (e não a raça) a havia salvo. Especificamente, nesta passagem bíblica, Jesus, de fato, alega – de modo puramente retórico – que estava ali para curar apenas os judeus, pelo que, então, a mulher ajoelha-se, humilha-se, suplica pungentemente para que, apesar de não ser judia, que o rabi cure sua filha. Jesus, então, diz que a fé da mulher está acima de sua etnia e que portanto a cura seria feita. Este ato mostra que a alegação anterior (de que curaria apenas judeus) era, então, puramente retórica, ou seja, forjada poeticamente para que Jesus se contradize-se a si mesmo, curando a não-judia e mostrando que a fé derruba qualquer etnia.

Será que Aslan – considerado , merecidamente, uma “nova revelação” da teologia americana – é tão pouco inteligente a ponto de não entender um procedimento metafórico/retórico como este? Ou não o entende simplesmente  porque não o quer entender, servindo a seus propósitos iniciais já pré-determinados?

No próximo artigo, domingo, dia 17.1.16, continuaremos esta discussão sobre os equívocos de Aslan.

*Em vários outros momentos Jesus diz que não está ligado profundamente a nenhum laço de etnia ou mesmo de sangue: “Quem são meus pais e quem são meus irmãos ?”,  “os meus próximos, estes é que são os meus irmãos”, “não julgueis pela aparência”, etc. A todo momento Jesus revogava a lei judaica; p. ex.: “Ouvistes o que foi dito, “olho por olho, dente por dente”, eu porém vos digo se qualquer um te bater na face direita, dá-lhe também a esquerda”; ou então: “Ouvistes o que foi escrito: amarás o teu próximo, odiarás o teu inimigo; eu porém vos digo, amai os vossos inimigos.”

 

(Marcelo Caixeta, médico-consultante do Serviço Hospitalar de Psicologia Médica, escreve as terças, sextas, domingos – [email protected])


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