Os grandes eixos da crise
Diário da Manhã
Publicado em 6 de abril de 2017 às 01:20 | Atualizado há 8 anos
A crise frequenta as conversas de interlocutores que, ao final de inquietantes preocupações, recorrem à pergunta: “onde estamos, para onde vamos”? Há intensa tensão entre os Poderes, a ponto de se falar abertamente na interpenetração de suas funções, o que resulta em conceitos como judicialização da política ou politização do Judiciário.
Na verdade, a crise que assola as instituições nacionais é a crise da própria democracia representativa. Que, na visão de Norberto Bobbio, não tem cumprido suas promessas, dentre elas, justiça para todos, educação para a cidadania e combate ao poder invisível, este que se desenvolve nas malhas da administração pública, abrindo amplas teias de corrupção, como se vê nessa Operação Lava Jato.
Se formos pesquisar as fontes que alimentam a crise, esbarraremos, primeiro, no fenômeno da desideologização. As ideologias fenecem. Na sociedade pós-industrial, a administração das coisas materiais prevalece sobre o campo das ideias. As doutrinas murcham como flores velhas, fazendo morrer as utopias, estiolando o espírito cívico e solapando os alicerces do Humanismo.
A política passa a servir a uma tríade composta por políticos, burocratas e círculos de negócios. Um pouco de lembrança. A débâcle do socialismo clássico, após a queda do Muro de Berlim, contribuiu para estreitar o campo ideológico.
Antigas clivagens ficaram sem eixo. A velha luta de classes perdeu lugar nos espaços da sociedade de consumo; passamos a conviver com o paradigma ditado pela tecnetrônica, essa mescla de tecnologia e eletrônica, cujos eixos convergem para a explosão da economia de serviços sob o predomínio de técnicos.
A tecnoburocracia
Nessa moldura, definha a competição política amparada nas ideias; ganha fôlego a burocracia; os grupos sociais tornam-se menos divergentes; os problemas de natureza técnica se sobrepõem às grandes questões sociais; os conglomerados monopolizam as informações.
Os partidos de massas, que nasceram sob o signo das lutas operárias, mudam suas bandeiras, arquivam seus motes, moderam atitudes, integrando-se à expansão econômica, o que lhes restringiu as forças. Os aderentes se desmotivaram, deixando declinar interesse pela vida partidária.
Otto Kirchheimer, constitucionalista alemão, chegou a cunhar um termo para designar os protagonistas nesses tempos de luta do poder pelo poder: “catch-all parties” (partidos que “agarram tudo o que podem”). O voto passa a ser de permuta e o apoio político se dá em troca de favores.
Mudanças na geopolítica internacional redesenham a configuração do Estado, que tem reduzido seu papel de fonte de direitos e de arena de participação. José Murilo de Carvalho, nosso bom historiador, receia que esta nova feição do Estado estiole o poder da Nação como principal fonte de identidade coletiva. Quando o Estado acaba sob o controle de mecanismos internacionais, o cidadão acaba vendo estreitados seus direitos. Já o mercado ganha força como mecanismo auto-regulador da vida econômica e social. Sob essa nova ordem, as pessoas se voltam para o consumismo e a priorizar as questões materiais.
A micropolítica
Os efeitos chegam ao campo da micropolítica. As comunidades passam a usar a moeda do pragmatismo, pelo balcão de trocas onde procuram satisfazer suas demandas imediatas. Desse modo, a macropolítica, a política das grandes questões, é substituída pela micropolítica, a política das coisas que afetam a vida cotidiana: a iluminação do bairro, a escola próxima à casa, o alimento barato, um sistema de mobilidade urbana acessível a todos.
Na esteira dessas exigências, os cidadãos adquirem maior racionalidade, adotando novos comportamentos, abrindo a era do que se pode chamar de “auto-gestão técnica”. Ou seja, já não se deixam levar por ondas demagógicas, promessas mirabolantes de atores sociais e políticos. Ganham autonomia. Sabem o que querem e como definir os meios para atingir as metas. Ainda como fruto desse conjunto de disposições, os grupos sociais tendem a se organizar melhor. Núcleos se formam no entorno de entidades e estas passam a intermediar interesses.
Organizações não governamentais em todas as esferas se multiplicam, fazendo pressão sobre os Poderes constituídos e buscando respostas para as demandas mais prementes. Por isso, a teia associativa tem uma atuação de cunho político: mobiliza a população, faz ecoar sua expressão nos vãos da política, articula na escolha de candidatos que serão seus representantes nas casas congressuais.
Sob o empuxo dessa democracia supletiva, a democracia participativa se expande. É assim que os movimentos, aqui e alhures, contribuem para reavivar as identidades nacionais, as forças das regiões, como parece ocorrer nos Estados Unidos e, agora, no Reino Unido, que sinaliza a saída da União Europeia. Um toque de nacionalismo não escapa aos ouvidos.
Atuando nas frentes da competição política, estão fulanos, beltranos e sicranos, alguns até tentando reavivar o espírito ideológico. Mas o que sobressai é seu estilo, sua índole, seu modus operandi. A personalização do poder emerge com força, alavancada pelos instrumentos do Estado-Espetáculo. No palco, desfilam os olimpianos da cultura de massa – celebridades do mundo dos divertimentos e protagonistas da política em seu papel de atores. Ocupam espaços das mídias de todos os calibres, alcançando, em função de intensa exposição pública, uma aura de heróis, figuras poderosas, salvadores da Pátria. Em contraponto, alguns se tornam impopulares, principalmente quando tomam medidas drásticas para equacionar os graves problemas enfrentados pelo Estado.
Novos condimentos, novos valores, novas inspirações constituem o menu que agrada aos grupamentos sociais. Cada vez mais distante da tradicional classe política, os cidadãos repelem os padrões da velha política, o fisiologismo, o caciquismo, o grupismo. Acolhem de maneira generosa aqueles que expressam assepsia, foco em resultados. Querem mais ação e menos discurso.
Com um acento mais grave ali, outro mais suave aqui, esta a leitura que se pode aplicar à nossa paisagem político-institucional.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação