Brasil

Os irmãos Couro-Duro, notórios ladrões de porco cheios de “sim sinhô”

Redação DM

Publicado em 29 de setembro de 2016 às 03:20 | Atualizado há 9 anos

Na festa de Conceição, um bando de anos atrás, topei com Deocleciano, morador na Pedra Preta, município da mesma Conceição do Norte, hoje do Tocantins, e mantivemos longo e delicioso bate-papo, cheio de “apois bom”, “justamente!”, apois num é?”, “ah, verdade!” e outras expressões que os Couro-Duro entremeiam em qualquer retalho de conversa.

Deocleciano viera pedir-me um encosto para ganhar uma aposendadoriazinha pelo Funrural, mercê do peso de sessentanos e de um mal que adquirira no levantar peso brocando roça: dizendo ele que estava rendido, não aguentando mais arribar o peso de tempos atrás. Como sertanejo, bastou que lhe oferecesse ajuda pois nem bem cheguei lá na rua, ele já riscava cobrando o adjutório.  Briquitamos daqui pracolá, tirando ali com o Newman do Cartório o registro civil e empurrei-o para a entrevista, dando um bom impulso, para ver se Deocleciano se encostava debaixo da proteção da Previdência, aguardando agora o decisório dos homens lá de cima.

Os irmãos Couro-Duro sempre foram tidos por ladrões de porcos ali no sertão de São José do Duro.  Não sei se por fama botada, mas o certo é que eles tinham essa má reputação. Aliás, estou nesta liberdade de dizer “Couro-Duro” porque estou cá de longe e porque eles são analfabetos, pois não se contam os casos de pessoas que tiveram que se explicar no tapa e na peixeira por conta do apelido.

Quando o padre Magalhães inaugurou o serviço de alto-falante “Maranata” lá no Duro, era comum a gente oferecer músicas para os conhecidos. E um malandro qualquer pediu ao locutor (que, se não me engano, era meu primo Péricles) para transmitir uma música qualquer “oferecida a Antônio Couro-Duro”.  Malmente as bocas da “Maranata” ecoaram o aviso, precisaram segurar o “homenageado” subindo a Rua de Baixo, que ele vinha babando de raiva para agarrar o autor da malfadada men-sagem e costurá-lo na peixeira ou dar umas exemplares espanadas de facão “Collins” no lombo.

Antônio Couro-Duro era o tipo servil, cheio de “inhô sim”, meu patrão praqui, meu patrão pracolá, sempre embondado com um fazendeiro protetor.  Negro, mas não muito, cara larga, um sorriso destes que assustam por se abrir numa cara fechada, Antônio Couro-Duro conservava os dentes afiados a poder de lima, parecendo um serrote.  Fala mansa, escondia atrás de uma aparência pacífica o instinto malvado, e vez por outra estava às voltas com a Justiça por conta de brigas ou de ladroagem de porco no sertão.

Deocleciano Couro-Duro, mais calmo e portador das qualidades carneiristas do irmão, não tenho certeza de que gozasse da má fama, morava nas imediações do Pintado, fazenda de Nélio, meu irmão, e era – como ainda é, se já não morreu – gostoso ouvi-lo: voz grave, linguajar característico do sertanejo, conhecedor das inhacas e mandraquices e inteiramente alheio às novidades do mundo de cá da cidade. Há uns anos, Nélio estava com Solon, também meu irmão, na fazenda e pegaram de papo com Deocleciano, que não sabia que o “rádio” que estava em cima da mesa era um gravador, trapizonga que ele nem sabia que existia. E desandou a falar de um e de outro, dizendo que Fulano era macumbeiro, que Sicrano gostava de furtar, que Beltrano tinha se embelezado com a mulher de não-sei-quem-lá, e isto e aquilo. Quando, ao final da conversa, Nélio ligou o gravador e Deocleciano ouviu a própria voz, ficou assombrado e inquieto que nem barata no caco, não se sabe se com medo daquela engrisia excomungada e mágica ou com receio dos Fulano, Sicrano e Beltrano, que fatalmente lhe reconheceriam a voz característica, cheia de “apois bom”, “e apois num é?”, “ancê tirô a palavra da minha boca”.  Mas ele foi tranquilizado com a promessa de não ser mostrada a gravação a ninguém, exceto àqueles que, aqui na cidade, cer-tamente, iriam se deliciar com o tempero gostoso da fala de Deocleciano.

Antônio Couro-Duro, conheci-o mais de perto, porque, durante umas férias que passei na Lagoinha, fazenda de tio Francisco (na época, promotor de Justiça), lá chegou Antônio pedindo proteção, pois o delegado, Jacobina, estava-lhe seu rastro. Con-quanto tio Francisco não lhe prometesse homizio, mesmo porque seu cargo seria comprometido, assegurou-lhe que durante o período em que ele estivesse ali não so-freria perseguição, e se o delegado ali fosse buscá-lo, tio Francisco iria com ele até à rua para garantir-lhe a integridade. De fato, dias depois, chegou lá Jacobina com dois soldados e carregaram Antônio para responder processo na rua.

Durante os dias que antecederam a prisão, divertimo-nos com Antônio, que contava um bando de propaganda de valentia como a coisa mais natural do mundo, mostrando seus dentes serrilhados a cada sorriso.

Tempos depois, encontrei-o numa das esquinas da rua, todo gemebundo, escorado num bordão, caminhando quase de arrasto. Seu estado de saúde – dizia ele – agravara-se com um reumatismo torturador que nem a entrecasca de bureré dera volta. Tanto que o delegado nem cuidou mais de trancá-lo durante o dia, para ver se pelo menos ele pegava um pouquinho de sol para atenuar o reumatismo. Um dia, perante Dr., Raul, o juiz, numa audiência, ele se desequilibrou e caiu, que o bordão saltou lá longe, precisando que fossem dar-lhe arrimo para levantar-se.

Foi só o delegado e a polícia se esquecerem dele por uns momentos, era uma vez Antônio Couro-Duro. Deram notícia dele descendo a Serra do Rela, a pé, descambando pro sertão, caminhando desimpedido feito menino.

A doença era só treta. Nem sei se o pegaram de volta.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])

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