Os “vendedores de fumaça” e seus reflexos no CNJ, que só aplica a lei de Lynch
Diário da Manhã
Publicado em 14 de março de 2018 às 23:22 | Atualizado há 7 anosHá mais de três anos (para ser mais preciso, no dia 01/01/2015), publiquei o artigo “Caça às bruxas), em que, já naquela época, dizia que magistratura brasileira estava vivendo, nos últimos tempos, um autêntico inferno astral, com sucessivas denúncias de corrupção, que envolviam, a cada dia, um novo magistrado.
Dizia eu que os integrantes do Executivo, nos três níveis, eram apanhados pelas propinas do su¬perfaturamento; os do Legislativo, pelos “mensalões”, o famoso “cala a boca” e outras variantes do dinheiro sujo, e o Judiciário, pela negociação de decisões, o que transformava o magistrado mal intencionado num autêntico marginal, com a agravante de poder usar a toga para obrigar ao cumprimento de suas ordens.
A mídia sempre vinha sendo prodigalizada pelas notícias diárias de envolvimento de magistrados no batido bordão de “venda de decisões”, notadamente liminares, pois permitiam que, dependendo do caso, subsistiam por muito tempo sem julgamento do mérito, enquanto a atividade por ela autorizada era desenvolvida aberta e “legalmente”, carreando ao bolso do beneficiário rios de dinheiro.
Já naquela época eu asseverava ser preciso esclarecer que um magistrado (juiz, desembargador, ministro) raramente elabora uma decisão pessoalmente, pois conta com uma assessoria para isto. E é aí que, muitas vezes, ele é penalizado sem dever; é mais fácil falar com um assessor do que com o julgador, e o advogado sempre tem poder de convencimento; o assessor lhe garante a decisão, ele vai à parte, combina o preço, às vezes recebe adiantado. O julgador, naquelas enormes pilhas de decisões a assinar, não tem nem como examinar uma a uma, e em regra confia no assessor, salvo em casos em que a mídia já está de olho. E a parte sucumbente não vai denunciar o assessor e muito menos o advogado, mas quem decidiu, que, sem saber o porquê, vai cair no colo da imprensa e – pior! – no do CNJ, injustamente vai penalizado por “vender decisões”.
E há maus advogados (pouquíssimos, é verdade) que recebem adiantado de ambas as partes, praticando o crime de tergiversação, previsto no artigo 355 do Código Penal, também denominado como patrocínio simultâneo. Quando sai o resultado, ele, na maior “cara de pau”, vai à parte que perdeu e até devolve a propina, com um “infelizmente não deu”. São os famosos “vendedores de fumaça”.
De uns anos para cá, rara semana deixa de pingar no noticiário um caso, geralmente com o nome de um juiz, mas parece que a temporada de caça às bruxas decidiu fazer uma varredura de alto a baixo, pegando desde o anônimo juiz substituto até membros das mais altas Cortes do nosso Judiciário, sem deixar escapar integrantes do Ministério Público, advogados, empresários e outros que ajudam a tipificar também o crime de formação de quadrilha. E um exemplo mais ou menos recente ocorreu no Ceará, quando uma quadrilha de advogados, dentre eles, um filho de desembargador, armou tanto, que envolveu alguns colegas, que se encontram às voltas com processo no STJ, por conta de conversas de WhatsApp de advogados “vendedores de fumaça”, que citaram seus nomes. E foram afastados pelo STJ em outubro de 2016, sem sequer serem ouvidos.
E aquele tribunal é tão absurdo em termos de preparo, que estes dias, ouvindo o áudio de uma de suas sessões plenárias, garimpei várias “pérolas”: ouvi uma catastrófica inversão processual, quando o MP falou depois da defesa; “neologismos” que desdizem o célebre “no Ceará não tem disso, não”, celebrizado pelo imortal Gonzagão: “hormônimo” (homônimo), “masistrado” (magistrado), “concuso” (concluso), ”resistro” (registro, imitando Renan Calheiros), “genéreo” (genérico), “quage” (quase), “frustando” (frustrando), “estrupo” (estupro), “apóquifo” (apócrifo), “Dr. Maquiovel” (Maquiavel), “foncional” (funcional), “porta da transferência” (portal da transparência), “intregante” (integrante), e assim vai, tornado, para quem entende um pouco do vernáculo, uma sessão plenária séria concorrente de filme de humor. Desse tribunal saiu o ministro Raul Filho, quase que diretamente da OAB para o STJ, pois passou ali coisa de dois anos como desembargador.
Analisando fria e imparcialmente a situação, o leitor de mediano discernimento faz uma observação: desde que a Polícia Federal passou a monitorar os passos, as ligações e a comunicação telefônica do pessoal togado (sempre precedido da observação “com autorização judicial”), a mídia deu uma trégua aos bandidos do Executivo e do Legislativo, responsáveis por fenomenais escândalos, dando a impressão de que existe uma orquestração deliberada de desviar o foco das atenções e, ao mesmo tempo, semear o descrédito no seio das instituições julgadoras.
E o caso tem fundamento, pois o Judiciário é o último baluarte em que se apoia o mais humilde cidadão em busca de um mísero direito que lhe é negado. No momento em que se conseguir colocar o Judiciário dentro do mesmo balaio onde se misturam “propineiros”, (mensaleiros, bingueiros, sanguessugas, petroleiros e outros elementos da mesma laia), estar-se-á semeando a cizânia e abrindo a caixa de Pandora numa babel anunciada. E no ambiente em que todos são suspeitos a tendência é prevalecer o mais esperto.
Não vamos crer, com inocência angelical, que todo o Judiciário é santo, pois há sempre maus entre bons e bandidos imiscuídos na camada ilibada, e como humanos os magistrados estão sujeitos às fraquezas, às tentações, mas os que desonram a toga são uma infinitésima minoria, que não alcança nem 1,5% da magistratura, o que salta aos olhos diante do percentual dos membros do Legislativo, por exemplo. Enquanto a magistratura fica nesse insignificante percentual de suspeita, o Legislativo, em todos os três níveis, supera os 30%… de fatos provados.
E de vez em quando pipoca um escândalo para desviar a mídia, mas sempre existe alguém da magistratura sendo notícia.
Em função desse desvio de foco, os justos pagam pelos pecadores, passando os bons magistrados (que são quase todos) a viver angustiados pela síndrome do grampo e sem a privacidade que lhes assegure a tranquilidade de julgar, transformando o telefone, fixo ou celular, em bomba de efeito retardado, diante dos recursos da tecnologia, que fazem tudo e podem até colocar na boca de alguém uma frase editada e fora do contexto, apenas para incriminá-lo.
Ser honesto hoje perante o público virou exceção.
O CNJ, na ânsia de aparecer na mídia (pois todo mundo adora ver um poderoso ser punido, mesmo sem saber de que se trata) vibra com as decisões punitivas do Conselhão, que, sem perquirir da veracidade da acusação, não investiga o assessor do magistrado ou o advogado que, por trás dos panos, levou o penalizado para a forca. Muitas vezes, sem este ser ouvido.
Mas já existe um pequeno avanço: no STJ, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, por exemplo, entende que não se pode de forma alguma condenar um servidor pelo simples fato de seu nome ter sido citado por um delator. E evidentemente o delator não viu (ou não quis ver) a origem da citação, por exemplo, do nome do magistrado que julgou algum processo em seu desfavor. Resta agora ao CNJ mudar seu entendimento, pois as punições administrativas continuam a ser aplicadas sem mesmo ouvir o magistrado e muitas vezes sem que ele saiba que está sendo investigado. E sou prova disso: nos 25 processos a que respondi no CNJ, fui ouvido em apenas um, em 2008, pela relatora de meu caso, conselheira Andréa Pachá. Nos outros, reviraram minha vida pelo avesso, e se não me aplicaram nem mesmo uma advertência, é porque nada existia contra mim. Houve processos de que só fui tomar conhecimento depois de aposentado.
Acho que não é só a magistratura que precisa ser passada a limpo, mas principalmente o CNJ, que passou de órgão de controle administrativo do Judiciário a ser o carrasco de magistrados (à exceção de ministros, que são casta diferente e para ele não são magistrados).
Ademais, para variar, o CNJ não é composto apenas de magistrados, como deveria ser, pois, afinal, deveriam minimamente entender a ida de um magistrado no seu sagrado mister de julgar: dos quinze integrantes, há nove “”magistrados”, mas nem todos são de carreira. Na verdade, somente – cinco – vieram originariamente da magistratura de carreira: Márcio Schiefler Fontes, Fernando César Baptista de Mattos, Daldice Maria Santana de Almeida, Valtércio Ronaldo de Oliveira e Francisco Luciano de Azevedo Frota.
Os restantes saíram da advocacia ou do MP, a iniciar-se da cúpula: Cármen Lúcia, Presidente, e João Otávio de Noronha, Corregedor Geral de Justiça, eram advogados, como também vieram da OAB os conselheiros Aloysio Corrêa da Veiga, André Luiz Guimarães Godinho, Valdetário Andrade Monteiro, Maria Tereza Uille Gomes e Henrique de Almeida Ávila. Do Ministério Público vieram Maria Iracema Martins do Vale, Rogério José Bento Soares do Nascimento e Arnaldo Hossepian Salles Lima Junior, alguns travestidos de magistrados de carreira, mas ingressaram na magistratura pelo odioso “quinto dos infernos”, que batizaram de “quinto constitucional”.
Daí, os julgamentos do CNJ serem marcados pela insensibilidade, pois dois terços dos seus membros jamais proferiram uma sentença, jamais tiveram nas mãos o decidir sobre a vida de alguém, preocupando-se em ser alvo dos holofotes da mídia, que são inevitáveis quando condenam um magistrado, desprezando o contraditório e, no dizer do nosso sábio sertanejo, vivem “escutando o chocalho sem ver a égua”.
Com inteira razão os sempre apavorados colegas magistrados, pois viver sob uma verdadeira espada de Dâmocles pode trazer instabilidade emocional, depressão, continuado assédio moral e coisas piores, pois hoje se vive um verdadeiro linchamento, igual aos filmes de faroeste, na segunda metade do Século XVIII, em que se enforcavam ladrões de cavalos, obedecendo à “Lei de Lynch”, mediante simples denúncia dos rancheiros, sem sequer julgar o acusado.
Tanto quanto o Judiciário, o CNJ, que infelizmente dele faz parte, precisa ser repaginado; a peso de polpudas diárias, pois somente quatro residem em Brasília: os onze restantes deslocam-se dos mais longínquos Estados, de primeira classe, no mínimo duas vezes por mês, com pelo menos seis diárias mensais e certamente generosos “jetons” que se pagam aos órgãos colegiados, para cumprir sua “dignificante” missão política de aferroar magistrados e expurgar da magistratura aqueles que estão incomodando algum poderoso, já que absurdamente sua nomeação é política, à exceção do Presidente e do Corregedor Geral de Justiça, que são natos. Mas para chegarem a ser natos foram nomeados politicamente.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])